24 de novembro, dia acreano da cultura ayahuasqueira

24 de novembro, dia acreano da cultura ayahuasqueira

terça-feira, 25 de novembro de 2014

Morre o Mestre "Nica"

Registramos, com pesar, o falecimento do Mestre João Facundes, conhecido como o senhor "Nica" nesta madrugada.

O seu Nica foi contemporâneo do Mestre Irineu e era líder do Centro Rainha da Floresta, no Alto Santo.

Nossos sentimentos!

sexta-feira, 5 de setembro de 2014

O ritual do Santo Daime na visão da Justiça



“Ritual do Santo Daime deve ser examinado à luz de um direito fundamental”, diz juiz federal M.Juiz Jair Araújo Facundes

O juiz federal Jair Araújo Facundes dedicou os últimos dois de seus 43 anos a realizar uma pesquisa para dissertação de mestrado em que aborda aspectos relacionados aos direitos fundamentais a partir do estudo de uma reivindicação concreta do direito à liberdade consubstanciada no caso ayahuasca.

Trata-se do controvertido uso ritual de uma bebida psicoativa, mais conhecida como Santo Daime, que contém uma substância, o alcalóide dimetiltriptamina (DMT), proibida em tratado internacional e na legislação de vários países.

Titular da 3ª Vara da Seção Judiciária do Acre, Jair Facundes examina decisões proferidas no âmbito administrativo e judicial e conclui que permitir ou negar o exercício de uma prática religiosa somente se justifica quando amparada por uma teoria política mais ampla acerca de como os bens, espaços e liberdades escassos devem ser ordenados no interior de uma comunidade política que busca se organizar por princípios que garantam a todos a mesma consideração e o mesmo respeito por parte do governo e da comunidade.

Em certa medida a pesquisa é sobre um processo registrado em 1974, em Rio Branco, envolvendo Leôncio Gomes, dirigente do centro original da doutrina do Daime, que foi intimado pela Polícia Federal para que se abstivesse de fazer uso da bebida psicoativa de origem indígena, feita a partir do cozimento de duas plantas, conhecidas, entre outros nomes, por ayahuasca, yagé, uascar, huni etc. A notificação policial relatava que várias “organizações altamente especializadas e laudos foram elaborados que comprovam, sem margem de dúvidas, a periculosidade de tal xarope”. Qualificava a bebida como droga, e afirmava que seu uso causa mal “não só físico mas à mente”. Continue lendo.

sábado, 16 de agosto de 2014

“Manuel Araújo – um amigo da União do Vegetal”

Amanheço lembrando-me de um grande amigo, o padrinho Manuel Araújo, velho pastor da Casa de Jesus – Fonte de Luz, em Rio Branco, AC. Amanhã, 17 de agosto comemora-se o dia de sua alegre partida para os Campos Celestiais.

Em a homenagem e gratidão a ele e aos amigos e fieis da Missão, reproduzo parte de uma crônica “Manuel Araújo – um amigo da União do Vegetal”, publicada em meu livro Estrela da Minha Vida.

“Padrinho Manuel Araújo está enfermo e passa a maior parte do tempo em uma rede branca nos fundos da casa. Com grande emoção para lá me dirijo. De longe, avisto a rede balançando suavemente entre alguns pés de Rainha – leve barquinha impulsionada pela brisa benfazeja, a deslizar no oceano do Criador.

Paro um instante e observo suas claras mãos. Magras e ainda firmes, deixam transparecer a simplicidade, o carinho do algodão, onde estão sobrepostas. Fortes mãos que nunca esmoreceram ao combater os vícios e ao segurar o leme de tantas vidas à deriva. No centro da rede – os olhos no céu preparam o breve voo -, o semblante sereno e manso do padrinho Manuel Araújo espelha humilde o esmero de quem tem as mãos limpas e o coração de ouro.

Os pés de Chacrona - amor de mãe agasalhando o filial coração – o acolhem, cercando-o com suavidade e ternura. Elas, a meus olhos imersos nas águas da gratidão, assemelham-se a um ninho de onde brevemente um pássaro irá voar, em busca da mesma luz.

Tomo a mão de Ana Celeste – leve como a aragem a envolver a Casa de Jesus – e despeço-me de meu amigo. Falamos poucas palavras. Nossos corações sentiam outra linguagem: o ressoar da futura saudade, o que hoje é uma realidade – rede branca a balançar entre verdes folhas.

Ah! Meu coração...


domingo, 20 de julho de 2014

Mestre Conselheiro Antônio Geraldo da Silva, o Marinheiro de Luz

Jornal Grande Bahia | Juarez Duarte Bomfim | Publicado em 20/07/2014

As Obras de Caridade, iniciadas lá no ano de 1945 pelo Mestre Daniel, tiveram
continuidade sob o comando zeloso do presidente Antônio Geraldo, um bom conselheiro.

Antônio Geraldo da Silva chegou a Rio Branco – Acre em 30 de junho de 1944, na condição de soldado da borracha. Por ser arrimo de família e pela forte oposição materna de enviar seu filho à guerra, foi poupado de lutar nos campos de batalha italianos.

O Brasil havia entrado na 2ª Guerra Mundial ao lado dos Aliados e jovens brasileiros eram recrutados para lutar na Itália. Um outro contingente de alistados — geralmente nordestinos — foi enviado pelo governo a Amazônia, para participar do esforço de guerra de suprir os americanos de borracha vegetal para a indústria civil e bélica.


Os soldados da borracha escapavam da violência e morte da II Guerra Mundial, mas não se livravam de doenças como a malária e do tratamento brutal e desumano perpetrados pelos seringalistas contra os seringueiros.

Inicialmente, Antônio Geraldo trabalhou como oleiro, depois foi enviado aos seringais. Adoeceu, retornou à cidade. Trabalhou novamente como oleiro. Passou inúmeras dificuldades materiais com desempregos frequentes e doenças como o impaludismo.

Eu tinha um Barquinho
Que navegava sem ter direção
Navegava num rio muito caudaloso
Chamava-se Rio Ilusão.

Com o falecimento da mãe, Maria Fernandes da Silva, abandonou o sonho de voltar a residir no Rio Grande do Norte. Músico violeiro, caiu na seresta e na boemia do bairro do Papôco — baixo meretrício da Cidade de Rio Branco – Acre. Bebia muito.

Eu fiquei desprezado
Chorando sem consolação
Fiquei sem Papai
Fiquei sem Mamãe
Fiquei sem meus irmãos.

No ano de 1948 casou-se com Antônia Ferreira da Silva. Órfã de pai e mãe, Antônia trabalhou como empregada doméstica até a época do seu matrimônio. Tiveram nove filhos. Dona Antônia ajudava no orçamento familiar exercendo a atividade de lavadeira.

Antônio Geraldo narra como conheceu o Mestre Daniel Pereira de Mattos, em junho de 1955:

— Conheci o Daniel por intermédio da Antônia. Ela conhecia o Daniel desde o tempo de moça. Eu não o conhecia, não sabia quem ele era. Então adoeceu o irmão da Antônia, o mais velho. Aí tive que ir com ela atrás de recurso para o irmão. Foi aí que conheci o Daniel. Quando chegamos na casa dele, ele nos recebeu muito bem. Ele fez o atendimento e eu fiquei de buscar a resposta do trabalho e o remédio que ele ia fazer pro irmão dela, num domingo. Então, chegou o domingo e vim atrás do resultado que ele ia preparar. Quando lá cheguei, ele disse que o irmão dela não tinha cura, só se Deus o permitisse. Em verdade nós tínhamos chegado muito tarde. A doença dele era sífilis que ele tinha arranjado de uma mulher. De fato o irmão dela não tinha cura mesmo.

Daniel convidou Antônio Geraldo para retornar no dia seguinte, pois tinha um assunto com ele. Antônio confirmou que iria. Mas, intimamente pensou: “venho uma desgraça que eu venho!”.

Já no dia subsequente:

— Quando cheguei do serviço a Antônia já tinha arrumado a roupa para eu ir lá no Daniel. O dia de eu voltar lá no Daniel era aquele. Eu cheguei por ali como quem não quer nada e ela disse assim:
— Rapaz, você não vai lá no Daniel? Ele não disse que tinha um negócio com você?
Desconfiado e vacilante, Antônio Geraldo responde:

— Eu mesmo não vou não!

Antônia insiste:

— Rapaz, você não disse pro homem que ia? Como é que você agora diz que não vai?

Com a insistência da esposa, e para não brigar com ela, Antônio Geraldo bolou um plano, em pensamento: “eu digo que vou e vou pro Papôco. Quando for mais ou menos lá para as nove, dez horas, eu venho pra casa e digo que fui”.

Respondeu para a mulher:

— Eu vou!

Vestiu a roupa e saiu de casa com a intenção de ir ao meretrício. No caminho, duas vozes contrárias falavam ao seu ouvido. Parecia que tinha um espírito bom e um espírito ruim o acompanhando, pensou.

A primeira voz lhe dizia: “Mas rapaz, como é que você vai mentir para a sua mulher sem necessidade? Tamanho homem! Rapaz, só porque o homem convidou para ir lá? Isso é papel de um homem?”

Mudava de rumo, em direção à Vila Ivonete. Um pouco mais à frente, a segunda voz o dissuadia. E trocava de rota, em direção ao Papôco. Foi assim nesta peleja até quando deu por si e já estava no terreiro de Daniel.

Antônio Geraldo chegou, parou diante a Capelinha de São Francisco, com uma Cruz de madeira em frente. Entrou.

— A Capela era pequenininha, tinha muita imagem de santo e era cheia de coisa. Uma vela acesa aqui, outra ali. Aí olhei para o Daniel, aquele homem preto escuro.

Preconceituoso, pensou: “agora apareceu um macumbeiro de verdade!”

A desconfiança e a imagem negativa que ele tinha do Mestre Daniel foi se desfazendo quando este lhe fez três perguntas: se amava a Deus, se tinha medo e se Antônio queria ver toda a sua vida.

Com respostas afirmativas de Antônio, na Santa Luz do Daime Daniel percebeu o seu valor e reconheceu nele um dos irmãos amigos a quem confiar a continuidade da Missão. Antônio Geraldo se tornou discípulo do Mestre.

Quando do desencarne do Fundador, em 8 de setembro de 1958, após breve crise sucessória em que os trabalhos estiveram suspensos por dois meses, os membros da Capelinha de São Francisco se reuniram e foram à casa de Antônio Geraldo da Silva convidá-lo a assumir a presidência. Antônio inicialmente vacilou em aceitar tamanha responsabilidade:

— Rapaz… Eu acho que não vou assumir esse compromisso, porque acho que não tenho a capacidade para isso. Eu vi o que foi que Daniel sozinho passou aí dentro desse compromisso. O sofrimento que ele teve, ele sozinho. E eu tenho uma mulher e oito filhos pequenos para dar de comer.

Porém, a estrela que o guiava e irradiava — o santo missionário Bispo Dom Policarpo — baixou, lhe orientando e motivando a seguir adiante, na Missão de Daniel.

Dessa maneira, Antônio Geraldo da Silva foi empossado na direção deste lindo Culto de Oração em 20 de janeiro de 1959, Dia do Soldado Guerreiro Mártir Senhor São Sebastião.

Seguindo os passos do seu Mestre, firmou um compromisso de não se afastar das dependências do Centro por dez anos. Chegou a despertar a atenção das autoridades eclesiásticas da Cidade de Rio Branco quando, em 30 de novembro de 1969, recebeu uma visita de integrantes da Ordem dos Servos de Maria, que o consideraram um “prisioneiro” — um preso voluntário por questões de ordem espiritual, necessária para cumprir o compromisso através do sacrifício.

Praticou a caridade e viveu da caridade. Habilidoso em mexer com aparelhos de rádio, fez um curso por correspondência e se tornou técnico em rádio e televisão, atividade profissional que exerceu no restante da sua vida em matéria, ajudando a sustentar a sua família.

A sua gestão a frente da Capelinha de São Francisco foi de institucionalização da Doutrina e de importantes empreendimentos feitos por esta laboriosa comunidade religiosa.

Ao longo das décadas de 1960 e 1970 foi concluída a nova igreja em alvenaria e o conjunto de edificações que constituem a arquitetura do Centro e a simbologia da Missão.

O período de gestão do irmão Antônio Geraldo foi também de inúmeras perseguições a Doutrina e profanações do Templo, que serviram como provação para os irmãos firmarem a fé e a continuidade desta Missão de Luz, cumprindo assim as palavras de Cristo: “se alguém quiser ser Meu discípulo, tome a sua cruz e me siga”.

Este foi um tempo de realizações não só materiais, mas principalmente ritualística e doutrinária. Na Santa Luz do Daime, o presidente Antônio Geraldo foi recebendo orientação espiritual do Mestre Daniel do que deveria ser feito para organizar os ritos doutrinários.

Novos salmos e hinos foram trazidos espiritualmente pelo Fundador. Em meados da década de 1970 o Livro Azul (Livro do Hinário) estava composto de 446 hinos.

As Obras de Caridade, iniciadas lá no ano de 1945 pelo Mestre Daniel, tiveram continuidade sob o comando zeloso do presidente Antônio Geraldo, um bom conselheiro. Ele era responsável pelos atendimentos espirituais no Altar da Igreja e pela distribuição do Daime. Com sua melodiosa voz entoava os salmos sagrados durante o Culto Santo.

Na sua gestão foi edificado o Salão de Bailado e instituído esse festejo, com a formação do Conjunto Santa Fé (banda musical).

Fala Antônio Geraldo da Silva:
— Eu via dentro da miração um barquinho navegando no mar. Do mesmo jeito que ele está ali, naquele formato (o Coreto com o Barquinho no topo), todo enfeitado, como depois eu construí. O Barquinho era para a gente ter o bailado.

Outra importante realização foi a criação e o estabelecimento do fardamento, com a simbologia da Missão, bordada à mão. A primeira responsável pelo bordado das fardas foi a irmã Francisca Campos do Nascimento (Dona Chica Gabriel). No seu exíguo tempo livre, o presidente Antônio Geraldo sentava ao seu lado, pegava da linha e agulha e ajudava na lida.

Passados 18 anos, Antônio Geraldo da Silva recebeu uma nova missão, a de fundar o Centro Espirita Daniel Pereira de Matos, em homenagem ao Fundador, e dai prosseguir com os trabalhos espirituais. A abertura do novo Centro ocorreu no dia 20 de janeiro de 1979 — dia do Mártir São Sebastião.

Eu com a fé pura
Que tive em meu coração
Pedi a Jesus
E a Virgem Santíssima
Que me desse outra embarcação.

Origem do nome Barquinha

Para abrir o Culto Santo no templo recém-edificado, o Mestre Conselheiro Antônio Geraldo da Silva contou com o apoio do irmão amigo Sebastião Mota de Melo (Padrinho Sebastião), que lhe forneceu os primeiros litros de Daime, após receber uma carta sua.

Depoimento de José Carlos Bezerra da Silva, presidente do Centro Espírita São Francisco de Assis, em Plácido de Castro – Acre:

— Esta carta foi entregue em minhas mãos e de seu filho Solerne Geraldo da Silva, e então fomos à Colônia Cinco Mil entregar a carta, e ao ler, Sebastião Motta nos entregou uma frasqueira de Daime e disse: “Diga a Antônio Geraldo que se ele precisar de mais pode mandar buscar”.

Eu sentado na margem
Do rio chamado Ilusão
Avistei uma Barquinha
Que vinha correndo
Rumo a minha direção.

Com auxilio de familiares e amigos, Antônio Geraldo, constrói uma igrejinha de madeira e um Salão de Bailado coberto de lona. Logo na primeira festa realizada, uma grande chuva derruba aquele salão improvisado. O dirigente não esmorece:

— Vamos fazer um Barquinho de verdade!

O Salão de Bailado (Parque) foi construído em formato de um Barco, e a partir daí surgiu o nome Barquinha, “pois como a capela ainda não possuía um nome, um título, então todos passaram a chamar de Barquinha” — afirma José Carlos Bezerra da Silva.

Eu me aproximei da Barquinha
Com alegria em meu coração
Nela vinha um bondoso velhinho
Ele entregou-me a Barquinha
E me deu muita explicação

O jornalista e escritor Silvio Martinello residia próximo ao Centro Espírita Daniel Pereira de Matos, lá na Vila Ivonete Nas suas crônicas narrando o cotidiano de seu bairro e da sua cidade, ele sempre se referia a “Barquinha”, especialmente nas noites de festas, quando a música comemorativa irradiada daquela casa Espírita varava as noites rio-branquenses. Isso popularizou o nome “Barquinha”, que os antropólogos passaram a associar a esta linha espiritual ayahuasqueira fundada por Mestre Daniel Pereira de Mattos em 1945, ano de início da Missão.

Este bondoso velhinho
Que trouxe esta embarcação
Foi o Nosso Presidente
Que trabalhou doze anos
Entre todos os meus irmãos.

Depoimento de Antônio Geraldo Da Silva Filho, herdeiro espiritual do Mestre Conselheiro:

— “Assim, passados 18 anos, ele recebeu uma nova missão, a de fundar outro Centro, o qual atribuiu o nome de Centro Espirita Daniel Pereira de Matos, em homenagem ao Fundador da Barquinha e dai prosseguiu com essa nova missão. A abertura do Centro Espírita Daniel Pereira de Matos foi no dia 20 de janeiro de 1979 e daí comandou esse Centro até julho de 2000, quando faleceu, deixando um legado de mais de 300 hinos que são cantados na Igreja e mais de 700 hinos para as festas com bailado, quando as entidades que passaram os hinos vêm para bailar. Esses hinos foram todos recebidos entre os anos 1979 e 2000. O Mestre Antônio Geraldo cumpriu sua missão até o fim, prova disso são os mais de 1000 hinos que recebeu. Um legado de mensagens de profundo conhecimento que só quem aprende a meditar, contemplar, buscar fundo mesmo, consegue compreender a grandeza que são esses ensinamentos”.

Este Marinheiro de Luz, Mestre Conselheiro Antônio Geraldo da Silva, faleceu aqui em matéria e renasceu no mundo espiritual em 28 de julho de 2000.

Lá da eternidade, inspira e orienta a irmandade da sua Barquinha a prosseguir na linda viagem sobre as ondas do Mar Sagrado, recolhendo almas penitentes para entrega-las nos Santos Pés de Jesus.

domingo, 6 de julho de 2014

6 de Julho. Passagem para a vida espiritual do Mestre Raimundo Irineu Serra Juramidã

Jornal Grande Bahia | Juarez Duarte Bomfim | Publicado em 06/07/2014

Todo aquele que de ti se recorde e te chame de coração, e confie, receberá a Luz.

Alquebrado pelo peso da idade e sentindo que se aproximava o dia de sua passagem para o mundo espiritual, Mestre Raimundo Irineu Serra dizia a todos que o procuravam:

- Eu não sinto dor. Eu não sinto fome. Eu não sinto nada. O que eu sinto é não ter para quem entregar o meu trabalho. E saudades de vocês. Eu sinto uma saudade tão grande de vocês que é isto que está me abatendo.

Já não comia carne, dizia que o organismo dele não mais aceitava essas coisas. No final de junho de 1971 ele chamou a um de seus seguidores mais próximos, Leôncio Gomes da Silva e lhe entregou a direção dos trabalhos, dizendo:

- Leôncio, tu vai assumir a direção dos trabalhos. Tu não vai ser o chefe. O chefe sou eu. Mas fique aí para receber as pessoas, para ensinar a doutrina. Escuta o que estou te dizendo, não faça mais do que estou te entregando.

Perto do dia 30 de junho de 1971, Percília Matos da Silva, discípula dileta, pergunta para ele:

- O senhor não gostaria de uma Concentração para melhorar sua saúde?

- É bom! Então vamos fazer. Chame o pessoal mais próximo.

E assim, a Concentração da noite de 30 de junho de 1971 – poucos dias antes do seu passamento – foi feita em benefício da sua cura. No final da função religiosa, Mestre Irineu perguntou:

- Quem foi que viu o meu enterro?

Os presentes disseram que não tinham visto nada, e ele disse que havia recebido um remédio e que ficaria bem.

- E que remédio é este, mestre?

- É um remédio que tem em todo lugar… Eu cheguei a um salão onde havia uma mesa arrumada, toda composta com as cadeiras em seu lugar, só havia uma cadeira vazia, a da cabeceira. Foi então quando a Virgem Mãe Soberana chegou ao meu lado e disse: “De hoje em diante você é o Chefe Geral dessa missão. O General. Tu és o chefe no Céu, na Terra e no Mar. Para todos os efeitos. Todo aquele que de ti se recorde e te chame de coração, e confie, receberá a Luz”.

Foi assim que, depois de 50 anos de trabalho, a Virgem da Conceição, Rainha da Floresta, afirmou e reafirmou o seu comando espiritual.

6 de julho de 1971. Depõe Percília:

“Todo dia quando eu saia daqui, ia lá. E, se não fosse, ele reclamava. Nesse dia eu fui. Ele estava alegre, alegre. Parecia não estar sentindo coisa nenhuma. Conversava e contava história. Fiquei um tempo por lá e disse que ia voltar pra casa pra fazer o almoço. Ele disse:

— Você não vai não. Você ‘tá com fome? – e chamou a menina para botar o almoço na mesa.

– Você não vai agora não. Quero conversar com você.

“Ele estava na maior alegria, contando tudo! Eu pensei: ‘Graças a Deus! Ele está bom!’ E disse para ele:

— Amanhã eu vou à rua, pois vou receber.

— Vá. Pode ir.

“Aí eu tomei benção e ele fez uma recomendação como nunca tinha feito antes. Não entendi nada. Eu o vi tão alegre que não suspeitei de coisa alguma. Ele me recomendou que eu fosse muito feliz. Saí tranquila… e satisfeita”.

A um grande mestre é dado o poder de saber a hora da sua passagem desta vida para o mundo espiritual. Jesus Cristo tinha todo o conhecimento da sua trajetória aqui na Terra, e isso, mais que facilitar a sua missão, aumentava o desafio rumo à vitória.

Prevendo o sofrimento que o esperava com a vil crucificação, suou “grossas gotas de sangue” no Horto das Oliveiras.

— Pai, se quiseres, afasta de Mim este cálice, não se faça, contudo, a minha vontade, mas a tua.

Então vindo do Céu, apareceu-Lhe um anjo que O confortava.

“Quando chegamos (Percília e Pedro, seu marido) em frente ao Palácio (Palácio Rio Branco, no centro da capital do Acre) encontramos a esposa do Seu Doca. Ela vinha amarela, com os cabelos assanhados. Foi logo dizendo:

— O Mestre, meu Deus! O Mestre morreu!

“Só acreditei quando cheguei. Ele ainda estava na cama. O suor derramando como se estivesse trabalhando muito”.

Foi nesta tarde de verão amazônico de 6 de Julho de 1971 que Raimundo Irineu Serra fez a sua passagem para o mundo espiritual, enquanto esperava um chá de folha de laranjeira que a filha Marta preparava. Nesse mesmo dia o seu corpo baixou à sepultura.

Pisei na terra fria
Nela eu senti calor.
Ela é quem me dá o pão
A minha Mãe que nos criou.

Havia ali um vaso cheio de vinagre. Imediatamente correu um deles (soldado) a tomar uma esponja, embebeu-a em vinagre e, fixando-a numa cana e levando-a à sua boca dava-lhe de beber”… “Então Jesus, depois de ter tomado o vinagre, disse:

- Está consumado!

Depois, tornando a dar um grande grito, Jesus entregou o Espírito, dizendo:

- Pai, em tuas mãos entrego o meu Espírito.

Dizendo isso, inclinou a cabeça, entregou o Espírito e expirou.

A minha Mãe que nos criou
E me dá todos os ensinos
A matéria eu entrego a ela
E meu espírito ao Divino

Nosso mestre, Raimundo Irineu Serra, adotou o lema do Círculo Esotérico da Comunhão do Pensamento — Hei de Vencer — que hoje adorna as portas de entrada de muitas casas e centros daimistas. O que temos de vencer é o pecado e a morte, para alcançarmos as promessas do Nosso Senhor Jesus Cristo: “Ao que vencer, farei dele uma coluna do templo do meu Deus; e nunca mais de lá sairá”, isto é, estará livre da “roda de sansara”, do ciclo de nascimento e morte, encarnação e desencarne… livre das agruras de ter que — “se Deus lhe der licença” — voltar a este plano de expiação e resgate que é o Planeta Terra.

Do sangue das minhas veias
Eu fiz minha assinatura
O meu espírito eu entrego a Deus
E o meu corpo à sepultura

Dona Percília esclarece: “e a história do remédio que ele tinha recebido é a terra onde se pisa. Ele não foi pra debaixo da terra? Ele não disse que tem em todo lugar? È a própria terra…”

Jesus Cristo, o Bom Pastor, veio para os seus: “Eu não deixo perecer nenhum daqueles que são meus”; Raimundo Irineu Serra, Mestre Ensinador, poderia afirmar, assim como o Cristo afirmou: “Todo aquele que é da verdade ouve a minha voz”, pois “bem-aventurados são os que ouvem a palavra de Deus e a guardam!”

A um irmão descrente que foi visitá-lo, e que lhe falou da dificuldade de acreditar em Deus, Mestre Irineu recomendou:

- Acredite em mim, que estou aqui, frente a você, que eu acredito em Deus por vós.

Aqui eu findei
Faço a minha narração
Para sempre se lembrarem
Do velho Juramidã.

Fonte: Jornal Grande Bahia - Blog do Juarez Bomfim

quinta-feira, 3 de julho de 2014

Centenário de Francisco Gabriel do Nascimento, servo de Jesus

Por Juarez Duarte Bomfim - 02.07.2014

Francisco Gabriel do Nascimento
O padrinho Chico Gabriel é um exemplo de zeloso patriarca, líder comunitário, soldado dos exércitos de Jesus.

Patriarca de uma laboriosa e ordeira família, Francisco Gabriel do Nascimento (seu Chico Gabriel) é um dos poucos remanescentes ainda encarnados contemporâneos do Mestre Daniel Pereira de Mattos, o Frei Daniel, fundador do Centro Espírita e Culto de Oração “Casa de Jesus — Fonte de Luz” (Rio Branco-Acre), linha espiritual carinhosamente apelidada de “Barquinha”.

Seu Chico Gabriel é um dos muitos nordestinos que migraram para a Amazônia nos ciclos da borracha e formaram a civilização acreana. Paraibano de Brejo do Cruz, uma das suas maiores diversões sempre foi contar causos e sagas de sua infância e juventude sertaneja.

A idade provecta do Padrinho Chico Gabriel (03.07.1914) o torna uma testemunha privilegiada do comecinho desta linda Missão de Luz, pois conheceu o Mestre Daniel quando este ainda construía uma pequena capela voltada para o nascente, medindo mais ou menos 3X5, uma construção rústica de taipa e paus roliços, coberta de palha, que consagrou a São Francisco das Chagas.

Foi assim: Chico Gabriel migrou para Rio Branco – Acre ao lado de um amigo e compadre de nome Luiz. Não tendo onde morar, se hospedara na casa deste amigo. Certa noite, ele conta que, já deitado, ouviu uma maviosa música de serenata e logo depois bateram à porta.

— Luiz!

— Quem é?

— É Daniel.

O compadre Luiz abriu a porta e saiu para o terreiro a conversar com o visitante, o qual ele chamava de Mestre. Ao término da reunião, Daniel falou para o amigo:

— Luiz, quinta-feira vá lá em casa. Estou te esperando.

Despediu-se e foi embora. Nesta época, pessoas humildes com problemas de saúde, dor de dente, espinhela caída, dificuldades familiares e alcoolismo recorriam a Daniel em busca de ajuda. O encontravam sentado num banquinho, lenço branco amarrado na cabeça, com quatro nós dados nas pontas, pronto para atender, conversar, aconselhar, ensinar remédio caseiro, banho de ervas… Dele recebiam uma palavra amiga, um conforto e a cura através do Santo Daime.

No dia combinado o amigo Luiz convidou Chico Gabriel:

— Vamos lá na casa do Mestre Daniel!

— Vamos!

Chico Gabriel conta que nesta primeira visita estavam começando a construção da igrejinha, bem pequena e simples. Após a entrevista do amigo Luiz com Daniel, o Luiz lhe perguntou:

— Quer conversar com o Mestre?

— Eu quase não tenho o que falar…

Mas mesmo assim foi lá conversar com o Mestre. Quando aqui em vida de matéria, manifestando os seus dons de vidência, Daniel costumava dizer para as pessoas:

— Eu sei quem você é e o que está sentindo. Sei o que veio à procura.

Então, o “preto-velho que adivinha” da Vila Ivonete relatava para o consulente quem ele era e o que queria.

— Salve Mestre!

— Salve! Você é Francisco Gabriel?

— Sim.

— Você é uma boa pessoa.

— Eu não sei Mestre. Deus é quem sabe.

— Você está metido numa caminhada perigosa.

Chico Gabriel prontamente negou… O que levou Daniel a reagir:

— Então sou um mentiroso?

— Não senhor… Mestre, quem tem culpa nunca confessa.

O Mestre Daniel falou de um conturbado envolvimento afetivo que Chico Gabriel tinha com uma mulher, e lhe disse que esta relação poderia lhe trazer sérios problemas. Falou também de tudo que se passava com ele. Seguindo os conselhos do seu futuro padrinho e mestre, ele deixou o “negócio” com a tal mulher.

Passaram-se dez anos… foi quando Chico Gabriel conheceu a jovem Francisca Campos. Órfã de pai e mãe, muito pobre e desvalida, a dona Chiquinha lhe contou como era a sua vida de dificuldades e sofrimento, chorando. Compadecido daquela jovenzinha, para consolá-la Chico Gabriel a pediu em casamento, brincando. Mas a pretendente levou a sério.

Passado alguns dias, a suposta noiva de Chico Gabriel lhe comunicou que precisava viajar para a Cidade de Humaitá, no Estado do Amazonas, e lhe pediu permissão.

Foi com alivio que ele autorizou a viagem da nubente, pensando consigo: “que bom… Dessa estou livre”…

Porém, quando dona Chiquinha retornou da viagem e o procurou, Chico Gabriel não pode rejeitá-la. “Não queria fazer uma desfeita”, diz.

Neste momento ele recebeu da Santíssima Rainha uma Rosa Menina, uma Rosa Encantada, cujo amor cultiva em seu peito há mais de seis décadas de vida marital.

Após o parto do seu terceiro filho, Chica Gabriel adoeceu gravemente. Desenganada pelos médicos, seu marido Chico Gabriel a levou para conhecer e se consultar com Daniel Pereira de Mattos — o Frei Daniel. Deste memorável encontro firmou-se um compromisso deste mundo à eternidade, quando seu Chico e dona Chica se tornaram trabalhadores daquela casa espírita, prestando obras de caridade.

Na manhã de domingo de 20 de maio de 1957 dá-se inicio a sua cura e o pacto por ela assumido de que “se ficasse boa continuaria naquela casa, naquela igreja, até o dia que Deus permitisse”.

Já curada, a Madrinha Chica Gabriel vem cumprindo o compromisso assumido de prosseguir a Missão do Mestre Daniel Pereira de Mattos.

Esposo e esposa prestaram obras de caridade naquela Casa de Luz durante quatro décadas, ao lado do Fundador, Frei Daniel, dos presidentes Antônio Geraldo da Silva, Manuel Hipólito de Araújo e de toda a irmandade.

Até que em 23 de novembro de 1991, com a ajuda de uns poucos irmãos, a Madrinha Chica e o seu cônjuge fundaram o Centro Espírita Obras de Caridade Príncipe Espadarte, dando continuidade a Missão de Daniel.

Foi o Padrinho Chico Gabriel — ao lado do filho mais velho Antônio — quem edificou a humilde casinha onde os trabalhos deste Centro Espírita se iniciaram. Casa de Jesus e da Virgem da Conceição consagrada ao Senhor São Francisco das Chagas.

O Padrinho Chico Gabriel é também um bom rezador, na tradição religiosa amazonense. Seguindo os passos do seu Mestre, quando a saúde e a idade permitiam rezava em adultos e principalmente em crianças, prestando obras de caridade.

Devoto do Senhor São Francisco das Chagas, quando a doença dos olhos se agravou aumentou a sua fé em Santa Luzia, cujo salmo muito aprecia.


Na Barra do Jordão, Deus Jesus encontrou
Um cego de guia

Que vinha guiado por sua filhinha
Jesus perguntou: para onde seguiam
— Senhor vou levando meu pai a Belém
Para ser curado por Jesus Messias.

A cirurgia de catarata que este simpático casal de velhinhos realizou em 2012 — cuidando dos seus olhos — lhes restituiu a boa visão e, como por mágica, os rejuvenesceram.

O padrinho Chico Gabriel é um exemplo de zeloso patriarca, líder comunitário, soldado dos exércitos de Jesus. Benzedor, sempre tem uma benção, um conforto, uma palavra amiga para aqueles que lhe procuram.

Companheiro inseparável da Irmã de Caridade, Madrinha Francisca Campos do Nascimento, como se fosse sua alma gêmea, o Padrinho Chico Gabriel plantou e semeou 10 filhos, inúmeros netos, bisnetos e tataranetos.

Servo de Jesus, Francisco Gabriel do Nascimento dá continuidade ao compromisso familiar assumido de prosseguir a Missão de Frei Daniel e dos Santos Missionários do Barquinho Santa Cruz, singrando os mares sagrados, recolhendo as almas penitentes e as entregando aos Santos Pés de Jesus.

terça-feira, 24 de junho de 2014

Arraial promovido pela União do Vegetal chega à 24ª edição

Arraiá da Amizade, que faz parte do calendário cultural da cidade, recebe mais de três mil pessoas durante duas noites.

Há 24 anos consecutivos, o Arraiá da Amizade é promovido pelo Centro Espírita Beneficente União do Vegetal (UDV), em Rio Branco. A tradicional festa junina, que a princípio era realizada apenas para os sócios do centro, hoje faz parte do calendário cultural da cidade e recebe, em média, um público estimado em três mil pessoas nas duas noites do evento.
Arraial organizado pela União do Vegetal se tornou uma tradiação/foto: Divulgação

O segredo de tanto sucesso está na organização, segundo Mayko Aguiar, coordenador do arraial esta ano.

Ele diz que cada detalhe é pensado com cuidado, como a decoração, alimentação, limpeza, estacionamento e segurança. Mayko Aguiar destaca a principal característica do arraial da UDV.

"É um ambiente familiar", garante. "Não vendemos bebidas alcoólicas e temos apoio da Polícia Militar, que realiza a segurança durante as duas noites".

Os atrativos das barracas são para todas as faixas etárias. A barraca da pescaria chega a ficar congestionada com a visita de tantas crianças. A barraca do Correio Elegante, onde é possível enviar recadinhos para serem lidos no palco, é de responsabilidade do grupo de jovens do centro. "Os jovens também colaboram. Participam. Além de cuidarem do Correio Elegante, fazem a quadrilha que anima a festa".

O centro da UDV é mantido apenas pelos associados. Por esse motivo, o arraial ajuda nas despesas. "O arraial da União é o nosso principal evento do ano. Temos o apoio de alguns empresários para realizar o evento; muitos deles são também sócios do centro. Com o dinheiro arrecadado, podemos fazer a manutenção do local", explica Mayko.

Este ano, o 24º Arraiá da Amizade será realizado nos dias 28 e 29 de junho, a partir das 18 horas, no núcleo João Lango Moura, localizado na estrada de Porto Acre, no bairro Alto Alegre.


sexta-feira, 20 de junho de 2014

No Acre, uma fogueira de São João e o velho enredo da intolerância religiosa

Por Jair Araújo Facundes

Tive a grata honra de participar do processo de criação da Área de Proteção Ambiental e Cultural Raimundo Irineu Serra, a primeira no Acre. E a oportunidade, da qual muito me orgulho, de integrar a primeira composição do Conselho Deliberativo dela.

Na exposição de motivos do decreto de criação discorreu-se sobre a dupla finalidade desta APA: a proteção do meio ambiente, e em particular, da bacia do igarapé São Francisco, e a proteção da manifestação cultural que ali se desenvolve há mais de 70 anos: a cultura ayahuasqueira.

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A criação da APA foi baseada numa ideia arrojada e muito ousada, embora não original: a firme crença de que cultura e meio ambiente não são valores antagônicos, mas indissociáveis, de modo que a cultura, o modo de vida que estabelecemos, determina nossa relação com o meio ambiente e que poderá ser de respeito e preservação ou mera exploração.

Surgiu, nesses dias, a curiosa notícia, em tom de “denúncia”, de que a fogueira de São João do Alto Santo é feita com árvores retiradas da APA, como se isso, por si só, caracterizasse violação às regras ambientais.

Curiosa porque essa prática data de mais de 70 anos. Todos os anos é motivo de reportagens nas várias emissoras de TVs e jornais, até mesmo imprensa nacional, e tal como tacacá, cupuaçu ou “baixaria”, é a cara do Acre. A isso seguiram-se várias postagens de opiniões nos jornais e redes sociais, algumas contra, outras a favor.

A discussão tem um viés jurídico fundamental que deve ser enfatizado. E discussão jurídica não isola argumentos antropológicos ou históricos de argumentos jurídicos, como se o direito existisse em alguma dimensão não humana e atemporal.

Segundo uma interpretação que veio a público, afirma-se que, se há uma norma proibindo a derrubada, então o ato de cortar árvores para fogueira é crime. Não importaria, para essa interpretação, se o corte é sustentável; ou mesmo que a APA tenha sido criada também para proteger justamente a prática religiosa ali nascida. Seria crime e ponto.

É uma interpretação literal de um só artigo de lei, como se não houvesse um sistema normativo em torno de cada dispositivo de lei, como se a interpretação, de modo válido e responsável, pudesse ser realizada de modo isolado.

A Constituição Federal ordena que o Estado proteja as manifestações das culturas populares (art. 215, §1º). A Constituição do Estado do Acre contém dispositivo semelhante (art. 201, §1º).

Agora já não temos uma lei dizendo ser infração o corte de madeira na APA, mas uma disposição normativa superior, de índole constitucional, ordenando a proteção de práticas culturais populares.

Num primeiro momento, essas disposições parecem conflitantes. Mas não são. Alguns apressadamente argumentaram que uma tradição cultural não pode se opor à lei, mas não explicaram, e deveriam, como uma lei pode se opor à Constituição: não se discorreu sobre como dois valores constitucionais concretamente devem ser sopesados e aplicados.

A colisão entre valores ou princípios constitucionais não é algo raro. É até mesmo recorrente. Liberdade de expressão versus privacidade; liberdade religiosa versus direito à vida (caso de algumas crenças que se recusam a transfusão de sangue), autodeterminação individual e o correlato direito de educar o filho a seu modo versus proteção integral da criança e adolescente.

Esses conflitos devem ser resolvidos à luz da Constituição, com exame de todas as circunstâncias relevantes implicadas e, tanto quanto possível, com obediência e cumprimento de todas as normas. É possível, mas exige certa boa vontade, desprendimento e uma visão menos setorizada, menos voluntarista e mais sistêmica da Constituição enquanto documento político destinado, entre outras coisas, a garantir direitos de minorias em face da maioria.
O então governador do Acre Binho Marques no São João de 2009

No caso da APA e da fogueira, creio, nem sequer conflito entre as normas há. Há uma norma que determina a proteção de práticas culturais; e outra norma que proíbe o corte. O sentido e a finalidade desta norma é proteger o meio ambiente. E se o corte é feito de modo sustentável, não haveria lesão ao bem protegido pela norma (proteção ao meio ambiente). Isso precisa ser bem esclarecido, para que se possa dar opinião responsável sobre os fatos.

Foi feito um estudo, a pedido da Secretaria Municipal de Meio Ambiente de Rio Branco (Semeia), para se saber se o corte de árvores para construção de uma fogueira com aproximadamente 20m³ seria sustentável ou não. Por outras palavras, o estudo, realizado pelo professor Evandro Ferreira (professor da Universidade Federal do Acre e pesquisador do Instituto de Pesquisas da Amazônia) visava responder à seguinte questão: essa extração de madeira permite que a cobertura florestal se recupere em tempo hábil ou é uma prática predatória e conduzirá, a médio ou longo prazo, à destruição total da mata? A pesquisa realizada constatou que a madeira cortada é “branca”, de pouco valor comercial, abundante na região e com alto potencial de renovação (faveira), e, por fim, que a cobertura suportaria aquela retirada.

As duas normas coexistem sem conflito. A norma de proteção ambiental não existe por si mesma, mas se justifica e tem sua existência condicionada ao fim a que se destina: a proteção do bem jurídico, no caso, o meio ambiente. Viola-se essa norma quando se praticam atos sem sustentabilidade; não se a viola quando o ato não lesiona o bem jurídico que ela tutela.

A questão veio a público de modo errado. Como denúncia de uma prática clandestina. E pior, como se os cidadãos fossem criminosos. O que não é. E com interpretações que divorciam bens jurídicos que podem e devem ser tratados de modo indissociável.

Devemos ter cuidado ao discutir temas constitucionais, e mais ainda ao fazer imputações com base em notícias de fatos não apurados. Do contrário, incorre-se no grave risco de i) se criminalizar práticas culturais de grupos minoritários; ii) interpretar a Constituição a partir da lei, e não o contrário: como é cediço, devemos interpretar a lei a partir da Constituição. E criminalizar-se apenas por criminalizar, sem maior fundamentação, com interpretações unilaterais de artigos ou disposições isoladas. No Brasil já criminalizamos as religiões afros e espíritas, além da capoeira. Não por acaso, práticas culturais de grupos minoritários.

Por certo que não se defende aqui que toda prática cultural deve ser respeitada, mesmo contrária à lei, como se fosse uma ordem em branco para tudo se tolerar, ou como se as pessoas de dada prática não estivessem, também, sob o império da lei, como se elas fossem especiais. Longe disso. Há práticas culturais que já foram permitidas e que devem sim ser proibidas, por discriminatórias, por degradantes. A “farra do boi” é o exemplo mais evidente e recente do que já foi permitido e hoje deve ser proibido.

O enfoque que se pretende oferecer é no interior da lei, no marco da legalidade a partir do princípio de que cada um quer para si aquilo que pode sustentar para os outros enquanto comunidade. É afirmar que a fogueira de São João, tal como construída e delimitada pela tradição religiosa, não atenta contra o meio ambiente, nem contra a finalidade da APA e realiza, concretiza uma das finalidades para as quais a APA foi criada.

Seria um Estado (lato senso) esquizofrênico, desmerecedor de respeito, aquele que cria uma APA para explicitamente proteger uma prática cultural e posteriormente se utiliza desta mesma APA para ameaçar com multa e ações penais quem mantém aquela prática protegida.

A interpretação criminalizante, para ser aceita, deve se fazer acompanhar de um pouco mais de embasamento jurídico para afastar a forte suspeita de que mais se trata de preconceito contra uma tradição religiosa que sincero interesse em proteger o meio ambiente.

É de conhecimento público que a doutrina religiosa fundada no uso da Ayahuasca e nas tradições que a circundam, como o uso da fogueira de São João, por ser a prática de uma minoria, historicamente vem enfrentando fortes tentativas de repressão, ora fundada em pretensa ofensa à “moralidade pública”, ora em pretensa ofensa à lei penal, e agora à lei ambiental. Ao longo do tempo, várias das razões para a repressão se mostraram apenas expressão de intolerância diante daquilo que é diferente.

O debate apressado, acobertado por aparentes gotas de juridicidade, pra outra coisa não serve senão reforçar a suspeita de que apenas estamos diante da releitura de um enredo já conhecido de intolerância. E sem graça alguma.

Jair Araújo Facundes é juiz federal

quinta-feira, 19 de junho de 2014

TV e prefeitura tentam criminalizar tradição da fogueira de São João no Alto Santo

Reportagem da TV Acre, reproduzida pelo G1(leia), tenta criminalizar a fogueira de São João que o Centro de Iluminação Cristã Luz Universal - Alto Santo, origem da doutrina do daime, fundado por Raimundo Irineu Serra, está preparando para o festejo junino neste ano.

O centro religioso funciona há 68 anos no local e moradores e seguidores da doutrina convenceram o então prefeito de Rio Branco, Raimundo Angelim, a decretar, em julho de 2005, mais de 800 hectares como Área de Proteção Ambiental (APA). A fogueira é uma tradição com mais de 68 anos, pois Irineu Serra e seus seguidores se estabeleceram primeiramente em outra área rural da cidade.

A APA Raimundo Irineu Serra foi criada com o objetivo de contribuir para a preservação do meio ambiente e da tradição religiosa. É a maior área verde na bacia do igarapé São Francisco e certamente a maior no perímetro urbano de Rio Branco.

A fogueira é feita apenas de madeira branca, sobretudo de freijó, mulungu e faveiro, que é a árvore mais abundante na área. Os moradores e seguidores da doutrina não fazem exploração comercial ou outros usos da madeira.

A secretária de Meio Ambiente de Rio Branco (Semeia), Silvia Brilhante, declarou à reportagem da TV Acre que para a retirada de qualquer árvore, seja em local público ou privado, é necessária uma autorização ambiental, mesmo sendo um caso ligado à religião. Ela enviou equipe de fiscalização e afirmou que os responsáveis podem pagar multa de até R$ 2,4 mil por cada árvore derrubada.

Silvia Brilhante assinalou que a derrubada das árvores precisa ser liberada pela Semeia e por se tratar de uma APA considerou o caso “mais preocupante e grave”.

O blog obteve depoimentos do jornalista Antonio Alves, que frequenta o Alto Santo e que faz parte do conselho da APA dentro da Semeia, do agrônomo Arthur Leite, ex-secretário Meio Ambiente de Rio Branco, e do botânico Evandro Ferreira. Os quatro consideram factível a exploração da madeira branca, principalmente do faveiro, que é a principal árvore usada na fogueira de São João do Alto Santo:

Antonio Alves, jornalista

"Vi no G1 uma matéria sobre uma fogueira de 20 metros de altura em Mâncio Lima (veja). Lá é bonitinho, mas aqui a TV Acre filma nossa fogueira de dentro do carro e vem com essa história de “nossa reportagem flagrou”, como se fôssemos um bando de criminosos. Podiam ir conosco à mata ou pedir nossas imagens, pois gravamos tudo. E na finalização da fogueira teremos uma equipe que vem fazer um documentário para a TV Brasil. Mostraremos nossa fogueira ao país inteiro, nossa festa de São João, nossa tradição de povo da floresta. Estamos dentro da lei e não temos nada a esconder.

Nossos vizinhos, das fazendas ou da cidade, não fazem fogueira de São João. Nós fazemos porque temos floresta. Cuidamos dela, plantamos, aproveitamos com sabedoria. Não fazemos queimada, nem desmatamento. Não fazemos uso comercial nem industrial de madeira, palha, semente, nada. O que retiramos, para algum uso eventual, é quase nada comparado ao que plantamos e o que a mata repõe naturalmente.

Uma vez por ano fazemos um adjunto com mais de 40 homens, tiramos faveiro, mulungu, freijó, mangueira, árvores de capoeira que crescem rápido, empilhamos com nossos braços em dias de muito suor e alegria. No final, nossa madrinha Peregrina Gomes Serra vem acompanhada de nossas mães, esposas e muitas crianças, nossos filhos e netos, para soltarmos fogos e fazermos uma foto ao lado da fogueira, que vamos acender ao cair da tarde de 23 de junho, no início do festival de São João.

Tenho pena de gente que não conhece nem ama a floresta, que não faz festa pra São João, que não sabe o que é o Daime, que nem olha para a lua ou para as estrelas, que tem medo da natureza e se protege dela atrás de uma mesa, um computador, uma televisão, uma vida de consumo e matéria plástica. No final, tudo queima. Viva São João!”.

Evandro Ferreira, botânico

“Inconsequente essa tentativa de proibir os moradores da APA Irineu Serra de usarem a madeira da faveira canafístula, cientificamente conhecida comoSchizolobium amazonicum, para fazer suas fogueiras durante as comemorações do São João, uma manifestação cultural e religiosa longamente praticada pelos adeptos do grupo religioso do Santo Daime que residem na referida unidade de conservação.

Em primeiro lugar é bom esclarecer que a APA é uma unidade de conservação de uso sustentável na qual aos moradores locais é permitida a exploração dos recursos naturais para sua sobrevivência ou comercialização. O Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC) classifica as APAs na mesma categoria das Reservas Extrativistas, nas quais os seringueiros podem morar e explorar a floresta para garantir o sustento de suas famílias. Na APA é a mesma situação, com o diferencial de que nelas, para a sua criação a lei admite que o aspecto cultural possa ser considerado como um dos requisitos para a sua existência. E isso a APA Irineu Serra tem de sobra, pois sua criação decorreu da insistência dos praticantes do Santo Daime, que temiam que a destruição dos remanescentes florestais existentes no bairro Irineu Serra descaracterizasse a profunda ligação dos seguidores da doutrina com a floresta.

Em segundo lugar, a retirada de árvores de faveira das áreas florestais da APA Irineu Serra para fazer fogueiras de São João não tem caráter comercial, mas cultural. Exigir licenças ambientais para tal atividade seria o mesmo que pedir às famílias de seringueiros que vivem em Reservas Extrativistas licenças para realizar a caça de subsistência e a derrubada de um ou outro pé de açaí e patauá para alimentar suas família.

Por último, no inventário florístico que realizamos na referida APA em 2009 constatamos (leia) que a faveira canafístula, que produz madeira branca, de pouco valor comercial, embora não seja a espécie mais abundante, é, graças ao grande porte da maioria dos seus indivíduos, a espécie dominante (20,8 m²/ha) no maior fragmento florestal existente na APA. Além disso, apresenta distribuição uniforme por todo fragmento e em razão de suas excelentes características silviculturais, especialmente a alta taxa de regeneração e rápido crescimento, sua exploração com o fim de fazer fogueiras uma única vez no ano é perfeitamente possível. Na verdade, a faveira canafístula é uma das poucas espécies existentes naquele fragmento florestal que poderiam ser exploradas comercialmente. Mas se essa fosse a intenção dos moradores da APA, então a licença de exploração e comercialização seria uma imposição legal. Não é o caso do uso da madeira para fazer fogueira”.

Arthur Leite, agrônomo

“Em relação ao problema que foi noticiado sobre o uso da madeira para a fogueira de São João, o mesmo fato já aconteceu antes. Em 2006 em uma das reuniões do conselho da APARIS, o tema foi levantado. Na época, a prefeitura ofereceu para os centros madeira dos trabalhos de poda e corte de árvores realizados na cidade. O Alto Santo optou por manter sua tradição de cortar uma árvore e preparar sua fogueira, foram então realizadas as seguintes ações:

1 - Vistoria da árvore que ia ser derrubada pela equipe da SEMEIA;
2- Plantio de 200 mudas de espécies florestais na área de capoeira realizado pelo Alto Santo como forma de compensação ambiental.

2 - Foi solicitado ao pesquisador do Inpa, Evandro Ferreira, uma pesquisa sobre o impacto ambiental da madeira utilizada existente nos remanescentes florestais da APA, a espécie mais utilizada é a canafistula (Schizolobium amazonicum), também conhecida como faveira. a conclusão do trabalho é que a exploração é factível devido a sua alta taxa de regeneração e rápido crescimento.

É necessário lembrar que a madeira é retirada de dentro da propriedade do Alto Santo para consumo e não tem finalidade comercial, como não transita por rodovias não tem a necessidade da DOF. Porém é sempre necessário solicitar o licenciamento junto a Semeia como órgão gestor da unidade para poda ou retirada da árvore.

Por fim, um dos objetivos da APA, além da preservação ambiental, é a preservação da cultura, onde a fogueira de São João se encontra inserida. A melhor forma de resolver definitivamente o problema é com a previsão desta prática no plano de manejo da unidade de conservação, que está neste momento em avaliação pelo conselho da unidade”.

Fogueira de São João em 2012