24 de novembro, dia acreano da cultura ayahuasqueira

24 de novembro, dia acreano da cultura ayahuasqueira

terça-feira, 24 de novembro de 2020

 

O registro dos dias: o dia da cultura Ayahuasqueira

Inês Virginia P Soares*

Desde 2018, a celebração do Dia da Cultura Ayahuasqueira, em 24 de novembro, integra o calendário do Estado do Acre. A previsão legal desta data, pela Lei estadual n° 3.399/18,  é um bom exemplo da amplitude do leque protetivo dos bens e direitos culturais.

Eleger dias comemorativos para formar e consolidar a memória coletiva é uma prática secular, muito usada em todo o mundo. No entanto, há sempre tensão nos processos de acomodação dos elementos da memória, com disputas pelo protagonismo das narrativas oficiais. E, durante muito tempo, não prevalecia a diversidade, e as homenagens eram, geralmente, rendidas a grupos ou pessoas que já desfrutavam de privilégios e poder.

Nesse contexto, o resgate da data da assinatura da “Carta de Princípios para o uso da ayahuasca perante a sociedade e o Governo Federal” (firmada em 24 de novembro de 1991), como o dia estadual para valorizar o exercício de uma manifestação cultural, fortalecer a diversidade cultural acreana e realçar a existência de um patrimônio cultural ligado ao uso da Ayahuasca em rituais religiosos, sinaliza novos ares e se consolida como uma iniciativa relevante e inspiradora.

A efeméride fortalece os que exercem seus direitos culturais e pode ser entendida como um lugar de memória, de acordo com a ideia original do termo, difundida pelo historiador Pierre Nora, na publicação de 1984, da coleção de textos intitulada Les lieux de mémoire, pela editora Gallimard, de Paris. Para Nora, os Lugares para a Memória “nascem e vivem do sentimento de que não há memória espontânea, que é preciso criar arquivos, manter aniversários, organizar celebrações, pronunciar elogios fúnebres, notariar atas..." (NORA, 1993). O citado historiador esclarece que esses lugares assumem os sentidos material, simbólico e funcional; e graus diversos. Inclusive, um lugar de aparência puramente material, como um depósito de arquivos, só é lugar de memória se a imaginação lhe confere uma aura simbólica. Um lugar puramente funcional, como um livro didático, um testamento ou uma associação de ex-combatentes só entra na categoria se for objeto de um ritual. Um minuto de silêncio, que parece o exemplo extremo de uma significação simbólica, é por sua vez o recorte material de uma unidade temporal e serve, periodicamente, para uma convocatória concentrada da lembrança (NORA, 1993).

​O termo foi inicialmente utilizado no campo dos direitos humanos para se referir a diferentes suportes para celebração das memórias de vítimas submetidas a graves violações e/ou supressões de direitos: desde um minuto de silêncio até locais que foram palco de violações de direitos e outras práticas nefastas. Pierre Nora também ressalta que certos lugares de memória são bastiões: “se o que eles defendem não estivesse ameaçado, não se teria, tampouco, a necessidade de construí-los” (NORA, 1993).

A instituição do Dia da Cultura Ayahuasqueira é, nessa visão, uma “pequena fortaleza”, um abrigo, para as comunidades que utilizam a bebida como um dos elementos essenciais de seu ritual religioso.

 Apesar da riqueza da concepção original do termo Lugar de Memória, a doutrina consolidou um entendimento mais restrito e hoje a expressão é usada para um espaço material e construído. A bibliografia anglo-saxã começou a falar de “sites of memory”; a hispânica de "sitio o espacios para la memoria”; e no Brasil a expressão usual é “Lugares de Memória” ou “Sítios de consciência”.

Assim, embora a data que celebra a cultura Ayahuasqueira seja essencialmente um lugar de memória, os estudiosos não a chamariam assim hoje em dia. Mas, podemos considerá-la como um relevante componente do conjunto de abordagens, mecanismos e ações para proteção, promoção e (re)conhecimento dessa prática cultural pela coletividade, com a finalidade de valorização da diversidade e fortalecimento dos direitos das pessoas que participam dos rituais que usam Ayahuasca, bem como de sua transmissão para as futuras gerações. E mais: essa data é um instrumento protetivo que tem respaldo nos artigos 215 e 216 da Constituição.

Nosso texto constitucional, além de indicar o dever do Estado de garantir a todos o pleno exercício dos direitos culturais, bem como o dever de apoiar e incentivar a valorização e a difusão das manifestações culturais (art. 215), ainda abarcou a imaterialidade na consideração dos bens que integram o patrimônio cultural brasileiro, não somente indicando que tanto as formas de expressão como os modos de fazer, criar e viver são bens culturais, como também ampliando os instrumentos protetivos dos bens culturais (art. 216, §1º), com uma ruptura clara da exclusividade ou preponderância do tombamento. O Registro surge nesse dispositivo da Constituição como um instrumento de destaque, já que veio para preencher a lacuna de proteção para os bens (imateriais), que não eram alcançados pelo tombamento. Mas, o aludido parágrafo §1º do art. 216 também deu abertura aos Estados e à comunidade para pensarem e implementarem “outras formas de acautelamento e preservação''.

Nessa perspectiva, a inserção de um dia no calendário estadual é uma forma de acautelamento que caracteriza como bastião da memória e tem sede constitucional. No entanto, é necessário usar também, e em conjunto, outros instrumentos protetivos do patrimônio cultural, a começar pelo Registro dos Usos Rituais da Ayahuasca.

A reflexão sobre os limites e avanços na proteção dos bens culturais imateriais no cenário brasileiro encontra no processo de Registro dos Usos Rituais da Ayahuasca, instaurado no IOHAN, em 2008, alguns pontos instigantes. A demora e os obstáculos encontrados na condução deste procedimento de registro desafiam a reflexão acerca de algumas posições defendidas sobre a importância deste instrumento protetivo.

O Decreto nº 3.551 de 2000 criou o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial e instituiu o registro de bens culturais que constituem o patrimônio cultural brasileiro. O procedimento de registro fica a cargo do IPHAN, a autarquia federal que cuida do patrimônio cultural brasileiro.

O registro pode se dar em um dos quatro Livros: Livro de Registro dos Saberes, Livro de Registro das Celebrações, Livro de Registro das Formas de Expressão e Livro de Registro de Lugares. Quando existir a necessidade de inscrição de um bem que não se enquadre em qualquer um dos livros já nominados pelo Decreto, outros livros poderão ser abertos com a finalidade de atender a demanda específica. Mesmo com a abertura normativa, nestes vinte anos, não se criou livro algum além dos quatro livros expressamente nominados no decreto.

Os procedimentos a serem observados na instauração e instrução do processo administrativo de Registro estão indicados na Resolução 001/2006, que regulamenta o Decreto 3.351/2000. Em seus considerandos, a citada Resolução define bem cultural de natureza imaterial como as criações culturais de caráter dinâmico e processual, fundadas na tradição e manifestadas por indivíduos ou grupos de indivíduos como expressão de sua identidade cultural e social; destaca, também, que o termo tradição é usado, na Resolução, em seu sentido etimológico de “dizer através do tempo”, significando práticas produtivas, rituais e simbólicas que são constantemente reiteradas, transformadas e atualizadas, mantendo, para o grupo, um vínculo do presente com o seu passado. 

A abertura do procedimento de registro se fará com base em parecer circunstanciado da Câmara do Patrimônio Imaterial e será precedida por Resolução específica do Conselho Consultivo, contendo a justificativa e a especificação das categorias correspondentes.

A elaboração e conclusão do Inventário Nacional de Referências Culturais (doravante INRC) é a primeira etapa para se registrar um bem como patrimônio cultural brasileiro. A segunda etapa é o Registro do bem, com sua inscrição em um dos quatro Livros de Registros. Inscrito, o bem recebe o título de “Patrimônio Cultural do Brasil”.

O INRC é definido, no site do IPHAN, como “principal instrumento de pesquisa de identificação a metodologia de pesquisas desenvolvidas para produzir conhecimentos sobre os domínios da vida social, aos quais são atribuídos sentidos e valores e, portanto, constituem marcos e referências de identidades para determinar a virtude social. A identificação de referências é estruturada em cinco categorias: celebrações, formas de expressão, ofícios e modos de fazer, edificações e lugares. O inventário, baseado no INRC, é dividido em três etapas: levantamento preliminar, identificação e documentação.”

Em 2017, o IPHAN organizou e realizou uma Apresentação Pública do Levantamento Preliminar do INRC dos Usos Rituais da Ayahuasca, em Rio Branco. Certamente uma atividade pertinente com os princípios de participação e transparência que regem o procedimento de Registro. Ao mesmo tempo, este evento público foi a última movimentação noticiada pelo IPHAN no procedimento. A estagnação na fase de levantamento preliminar do INRC e sua inconclusão até a presente data destoam da iniciativa de diálogo e de valorização dos princípios da boa gestão administrativa. Afinal, a demora no processo decisório transmite à comunidade uma mensagem de pouca relevância do bem a ser registrado, ao contrário da celeridade, que sinaliza que a avaliação do bem é prioridade e que o exercício dos direitos e da diversidade cultural merece atenção, valorização e ações do poder público.

No mais, não custa lembrar a necessidade de finalização do INRC, já que este inventário, além de pressuposto para a fase decisória do Registro, é também um instrumento que pode ter valor protetivo autônomo, porque seu teor, como esclarecido na definição transcrita acima do site do IPHAN, consiste na produção de “conhecimentos sobre os domínios da vida social, aos quais são atribuídos sentidos e valores e, portanto, constituem marcos e referências de identidades para determinar a virtude social.”

A Resolução IPHAN 001/2006, que regulamenta o Decreto 3.351/2000, estabelece a participação da sociedade também na fase decisória do Registro. No art. 12 da aludida Resolução é prevista a manifestação da sociedade após a conclusão da instrução técnica do processo administrativo de Registro e do seu exame pela Procuradoria Federal. O prazo para que a manifestação dos interessados será de 30 dias a partir da publicação, na imprensa oficial, de aviso contendo o extrato do parecer técnico do IPHAN e demais informações pertinentes. No art. 13, parágrafo único, da mesma norma, tem-se a previsão de realização de audiência pública, caso tenham ocorrido manifestações em contrário por parte da sociedade. A decisão acerca a realização ou não de audiência pública fica ao cargo do Conselho Consultivo.

Vale destacar que todo movimento e aparato administrativo colocado à disposição da comunidade ou do indivíduo deve ser no sentido de que seu direito fundamental à liberdade cultural seja realizado plenamente, não cabendo indicação restritiva na forma de gestão ou manejo do bem, ou ainda controle do teor das manifestações ou expressões populares ou tradicionais. As medidas voltadas para a promoção e fomento dessas manifestações culturais, pelos órgãos públicos, devem ser sempre iniciativas complementares indispensáveis à proteção propiciada pelo Registro.

No mais, o registro não cria ou modifica o status ou a essência do bem imaterial. O valor dos Usos Rituais da Ayahuasca é conhecido e vivido por grupos que exercemsua liberdade de manifestação cultural e religiosa. Nessa ótica, a patrimonialização não mudará a relação dos participantes com o bem imaterial.

No entanto, quando (ou se) o IPHAN reconhecer que a prática cultural de utilização da bebida em ritual religiosos se enquadra nos requisitos para a concessãoo título de Patrimônio Cultural Brasileiro, ocorrerá um fortalecimento dos grupos e da prática nos espaços públicos e perante a sociedade em geral. Haverá exigência de posicionamento do poder público no sentido de evitar, também sob a ótica da patrimonialização, que direitos dos praticantes sejam violados. O compromisso de respeitar a prática cultural será público e se irradiará pela comunidade.

Nessa perspectiva, a titulação é um instrumento que se projeta para o futuro já que com o Registro vem o Plano de Salvaguarda e a possibilidade de uma maior proteção dos Usos Rituais da Ayahuasca.

Ao pensar na relação intergeracional e no legado da cultura Ayahuasqueira, surgem alguns dos pontos comuns a outros tantos patrimônios imateriais: o fortalecimento da identidade cultural, o respeito a diversidade cultural, o vínculo da comunidade com seu território e a compreeenção dos elos ou de memória que ligam os indivíduos de uma comunidade a seus bens culturais.

O arranjo institucional protetivo dos direitos e bens culturais é norteado pela ideia de que a proteção dos bens imateriais apenas tem sentido em um contexto vivo, de compartilhamento de experiências e de conhecimento. Por essa razão, para muitos patrimônios, inclusive para os Usos Rituais da Ayahuasca, o Registro pelo IPHAN é uma bandeira de luta, reconhecimento e resistência.        O uso da Ayahuasca tem inúmeras interfaces e tensões, com complexidades bem maiores e mais largas do que as advindas da seara do patrimônio cultural. Há muitos outros interesses legítimos e com consequências econômicas e de saúde pública, que não podem ser desconsideradas.  Mas, a meu ver, esse debate não é essencial ou nem é pressuposto para adoção de medidas protetivas e de patrimonialização do bem imaterial das comunidades não indígenas que praticam a cultura ayahuasqueira.

            Não posso encerrar este texto sem mencionar a lição instrinseca entre os usos rituais da ayahuasca e o conhecimento tradicional dos povos da região amazônica. Mas essa lição não me impede de considerá-los como bens autônomos, como características próprias. Sei que, nesse contexto, há a complicadíssima discussão sobre os limites do protagonismo dos povos indígenas. grupo detentor desse saber ancestral. Mas, na minha opinião, são diferentes as perspectivas entre os povos indígenas e os grupos que usam a Ayahuasca em seus rituais religiosos, apesar da bebida em comum. Também noto que o suporte normativo, a começar pelo suporte constitucional, é diverso. Exatamente dentro dessa lógica é que percebo que há espaço para diálogo e construção de soluções.

       Uma das janelas de reflexão que mais me interessa e me encanta na temática cultural é exatamente a imprescindibilidade da existência de dias especiais para o exercício dos diretos culturais. A riqueza do cotidiano é, quase sempre, suficiente para a liberdade de expressão cultural. Mas, vez por outra, o excepcional acontece e uma luta de anos vira um “Dia”. É inspirador pensar que a inscrição do Dia da Comunidade Ayahuasqueira se transformou em instrumento protetivo; e que este meio de proteção dura meses, anos, enquanto espera o Registro e tudo mais que o tempo trouxer.

       *Inês Virgínia Prado Soares - formada em direito, é desembargadora do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, mestre e doutora em direito pela Pontifícia Universidade Católica da São Paulo – PUC-SP, com estágio de pós-doutorado no Núcleo de Estudos de Violência da Universidade de São Paulo – NEV-USP (2009-2010).

           

terça-feira, 25 de novembro de 2014

Morre o Mestre "Nica"

Registramos, com pesar, o falecimento do Mestre João Facundes, conhecido como o senhor "Nica" nesta madrugada.

O seu Nica foi contemporâneo do Mestre Irineu e era líder do Centro Rainha da Floresta, no Alto Santo.

Nossos sentimentos!

sexta-feira, 5 de setembro de 2014

O ritual do Santo Daime na visão da Justiça



“Ritual do Santo Daime deve ser examinado à luz de um direito fundamental”, diz juiz federal M.Juiz Jair Araújo Facundes

O juiz federal Jair Araújo Facundes dedicou os últimos dois de seus 43 anos a realizar uma pesquisa para dissertação de mestrado em que aborda aspectos relacionados aos direitos fundamentais a partir do estudo de uma reivindicação concreta do direito à liberdade consubstanciada no caso ayahuasca.

Trata-se do controvertido uso ritual de uma bebida psicoativa, mais conhecida como Santo Daime, que contém uma substância, o alcalóide dimetiltriptamina (DMT), proibida em tratado internacional e na legislação de vários países.

Titular da 3ª Vara da Seção Judiciária do Acre, Jair Facundes examina decisões proferidas no âmbito administrativo e judicial e conclui que permitir ou negar o exercício de uma prática religiosa somente se justifica quando amparada por uma teoria política mais ampla acerca de como os bens, espaços e liberdades escassos devem ser ordenados no interior de uma comunidade política que busca se organizar por princípios que garantam a todos a mesma consideração e o mesmo respeito por parte do governo e da comunidade.

Em certa medida a pesquisa é sobre um processo registrado em 1974, em Rio Branco, envolvendo Leôncio Gomes, dirigente do centro original da doutrina do Daime, que foi intimado pela Polícia Federal para que se abstivesse de fazer uso da bebida psicoativa de origem indígena, feita a partir do cozimento de duas plantas, conhecidas, entre outros nomes, por ayahuasca, yagé, uascar, huni etc. A notificação policial relatava que várias “organizações altamente especializadas e laudos foram elaborados que comprovam, sem margem de dúvidas, a periculosidade de tal xarope”. Qualificava a bebida como droga, e afirmava que seu uso causa mal “não só físico mas à mente”. Continue lendo.

sábado, 16 de agosto de 2014

“Manuel Araújo – um amigo da União do Vegetal”

Amanheço lembrando-me de um grande amigo, o padrinho Manuel Araújo, velho pastor da Casa de Jesus – Fonte de Luz, em Rio Branco, AC. Amanhã, 17 de agosto comemora-se o dia de sua alegre partida para os Campos Celestiais.

Em a homenagem e gratidão a ele e aos amigos e fieis da Missão, reproduzo parte de uma crônica “Manuel Araújo – um amigo da União do Vegetal”, publicada em meu livro Estrela da Minha Vida.

“Padrinho Manuel Araújo está enfermo e passa a maior parte do tempo em uma rede branca nos fundos da casa. Com grande emoção para lá me dirijo. De longe, avisto a rede balançando suavemente entre alguns pés de Rainha – leve barquinha impulsionada pela brisa benfazeja, a deslizar no oceano do Criador.

Paro um instante e observo suas claras mãos. Magras e ainda firmes, deixam transparecer a simplicidade, o carinho do algodão, onde estão sobrepostas. Fortes mãos que nunca esmoreceram ao combater os vícios e ao segurar o leme de tantas vidas à deriva. No centro da rede – os olhos no céu preparam o breve voo -, o semblante sereno e manso do padrinho Manuel Araújo espelha humilde o esmero de quem tem as mãos limpas e o coração de ouro.

Os pés de Chacrona - amor de mãe agasalhando o filial coração – o acolhem, cercando-o com suavidade e ternura. Elas, a meus olhos imersos nas águas da gratidão, assemelham-se a um ninho de onde brevemente um pássaro irá voar, em busca da mesma luz.

Tomo a mão de Ana Celeste – leve como a aragem a envolver a Casa de Jesus – e despeço-me de meu amigo. Falamos poucas palavras. Nossos corações sentiam outra linguagem: o ressoar da futura saudade, o que hoje é uma realidade – rede branca a balançar entre verdes folhas.

Ah! Meu coração...


domingo, 20 de julho de 2014

Mestre Conselheiro Antônio Geraldo da Silva, o Marinheiro de Luz

Jornal Grande Bahia | Juarez Duarte Bomfim | Publicado em 20/07/2014

As Obras de Caridade, iniciadas lá no ano de 1945 pelo Mestre Daniel, tiveram
continuidade sob o comando zeloso do presidente Antônio Geraldo, um bom conselheiro.

Antônio Geraldo da Silva chegou a Rio Branco – Acre em 30 de junho de 1944, na condição de soldado da borracha. Por ser arrimo de família e pela forte oposição materna de enviar seu filho à guerra, foi poupado de lutar nos campos de batalha italianos.

O Brasil havia entrado na 2ª Guerra Mundial ao lado dos Aliados e jovens brasileiros eram recrutados para lutar na Itália. Um outro contingente de alistados — geralmente nordestinos — foi enviado pelo governo a Amazônia, para participar do esforço de guerra de suprir os americanos de borracha vegetal para a indústria civil e bélica.


Os soldados da borracha escapavam da violência e morte da II Guerra Mundial, mas não se livravam de doenças como a malária e do tratamento brutal e desumano perpetrados pelos seringalistas contra os seringueiros.

Inicialmente, Antônio Geraldo trabalhou como oleiro, depois foi enviado aos seringais. Adoeceu, retornou à cidade. Trabalhou novamente como oleiro. Passou inúmeras dificuldades materiais com desempregos frequentes e doenças como o impaludismo.

Eu tinha um Barquinho
Que navegava sem ter direção
Navegava num rio muito caudaloso
Chamava-se Rio Ilusão.

Com o falecimento da mãe, Maria Fernandes da Silva, abandonou o sonho de voltar a residir no Rio Grande do Norte. Músico violeiro, caiu na seresta e na boemia do bairro do Papôco — baixo meretrício da Cidade de Rio Branco – Acre. Bebia muito.

Eu fiquei desprezado
Chorando sem consolação
Fiquei sem Papai
Fiquei sem Mamãe
Fiquei sem meus irmãos.

No ano de 1948 casou-se com Antônia Ferreira da Silva. Órfã de pai e mãe, Antônia trabalhou como empregada doméstica até a época do seu matrimônio. Tiveram nove filhos. Dona Antônia ajudava no orçamento familiar exercendo a atividade de lavadeira.

Antônio Geraldo narra como conheceu o Mestre Daniel Pereira de Mattos, em junho de 1955:

— Conheci o Daniel por intermédio da Antônia. Ela conhecia o Daniel desde o tempo de moça. Eu não o conhecia, não sabia quem ele era. Então adoeceu o irmão da Antônia, o mais velho. Aí tive que ir com ela atrás de recurso para o irmão. Foi aí que conheci o Daniel. Quando chegamos na casa dele, ele nos recebeu muito bem. Ele fez o atendimento e eu fiquei de buscar a resposta do trabalho e o remédio que ele ia fazer pro irmão dela, num domingo. Então, chegou o domingo e vim atrás do resultado que ele ia preparar. Quando lá cheguei, ele disse que o irmão dela não tinha cura, só se Deus o permitisse. Em verdade nós tínhamos chegado muito tarde. A doença dele era sífilis que ele tinha arranjado de uma mulher. De fato o irmão dela não tinha cura mesmo.

Daniel convidou Antônio Geraldo para retornar no dia seguinte, pois tinha um assunto com ele. Antônio confirmou que iria. Mas, intimamente pensou: “venho uma desgraça que eu venho!”.

Já no dia subsequente:

— Quando cheguei do serviço a Antônia já tinha arrumado a roupa para eu ir lá no Daniel. O dia de eu voltar lá no Daniel era aquele. Eu cheguei por ali como quem não quer nada e ela disse assim:
— Rapaz, você não vai lá no Daniel? Ele não disse que tinha um negócio com você?
Desconfiado e vacilante, Antônio Geraldo responde:

— Eu mesmo não vou não!

Antônia insiste:

— Rapaz, você não disse pro homem que ia? Como é que você agora diz que não vai?

Com a insistência da esposa, e para não brigar com ela, Antônio Geraldo bolou um plano, em pensamento: “eu digo que vou e vou pro Papôco. Quando for mais ou menos lá para as nove, dez horas, eu venho pra casa e digo que fui”.

Respondeu para a mulher:

— Eu vou!

Vestiu a roupa e saiu de casa com a intenção de ir ao meretrício. No caminho, duas vozes contrárias falavam ao seu ouvido. Parecia que tinha um espírito bom e um espírito ruim o acompanhando, pensou.

A primeira voz lhe dizia: “Mas rapaz, como é que você vai mentir para a sua mulher sem necessidade? Tamanho homem! Rapaz, só porque o homem convidou para ir lá? Isso é papel de um homem?”

Mudava de rumo, em direção à Vila Ivonete. Um pouco mais à frente, a segunda voz o dissuadia. E trocava de rota, em direção ao Papôco. Foi assim nesta peleja até quando deu por si e já estava no terreiro de Daniel.

Antônio Geraldo chegou, parou diante a Capelinha de São Francisco, com uma Cruz de madeira em frente. Entrou.

— A Capela era pequenininha, tinha muita imagem de santo e era cheia de coisa. Uma vela acesa aqui, outra ali. Aí olhei para o Daniel, aquele homem preto escuro.

Preconceituoso, pensou: “agora apareceu um macumbeiro de verdade!”

A desconfiança e a imagem negativa que ele tinha do Mestre Daniel foi se desfazendo quando este lhe fez três perguntas: se amava a Deus, se tinha medo e se Antônio queria ver toda a sua vida.

Com respostas afirmativas de Antônio, na Santa Luz do Daime Daniel percebeu o seu valor e reconheceu nele um dos irmãos amigos a quem confiar a continuidade da Missão. Antônio Geraldo se tornou discípulo do Mestre.

Quando do desencarne do Fundador, em 8 de setembro de 1958, após breve crise sucessória em que os trabalhos estiveram suspensos por dois meses, os membros da Capelinha de São Francisco se reuniram e foram à casa de Antônio Geraldo da Silva convidá-lo a assumir a presidência. Antônio inicialmente vacilou em aceitar tamanha responsabilidade:

— Rapaz… Eu acho que não vou assumir esse compromisso, porque acho que não tenho a capacidade para isso. Eu vi o que foi que Daniel sozinho passou aí dentro desse compromisso. O sofrimento que ele teve, ele sozinho. E eu tenho uma mulher e oito filhos pequenos para dar de comer.

Porém, a estrela que o guiava e irradiava — o santo missionário Bispo Dom Policarpo — baixou, lhe orientando e motivando a seguir adiante, na Missão de Daniel.

Dessa maneira, Antônio Geraldo da Silva foi empossado na direção deste lindo Culto de Oração em 20 de janeiro de 1959, Dia do Soldado Guerreiro Mártir Senhor São Sebastião.

Seguindo os passos do seu Mestre, firmou um compromisso de não se afastar das dependências do Centro por dez anos. Chegou a despertar a atenção das autoridades eclesiásticas da Cidade de Rio Branco quando, em 30 de novembro de 1969, recebeu uma visita de integrantes da Ordem dos Servos de Maria, que o consideraram um “prisioneiro” — um preso voluntário por questões de ordem espiritual, necessária para cumprir o compromisso através do sacrifício.

Praticou a caridade e viveu da caridade. Habilidoso em mexer com aparelhos de rádio, fez um curso por correspondência e se tornou técnico em rádio e televisão, atividade profissional que exerceu no restante da sua vida em matéria, ajudando a sustentar a sua família.

A sua gestão a frente da Capelinha de São Francisco foi de institucionalização da Doutrina e de importantes empreendimentos feitos por esta laboriosa comunidade religiosa.

Ao longo das décadas de 1960 e 1970 foi concluída a nova igreja em alvenaria e o conjunto de edificações que constituem a arquitetura do Centro e a simbologia da Missão.

O período de gestão do irmão Antônio Geraldo foi também de inúmeras perseguições a Doutrina e profanações do Templo, que serviram como provação para os irmãos firmarem a fé e a continuidade desta Missão de Luz, cumprindo assim as palavras de Cristo: “se alguém quiser ser Meu discípulo, tome a sua cruz e me siga”.

Este foi um tempo de realizações não só materiais, mas principalmente ritualística e doutrinária. Na Santa Luz do Daime, o presidente Antônio Geraldo foi recebendo orientação espiritual do Mestre Daniel do que deveria ser feito para organizar os ritos doutrinários.

Novos salmos e hinos foram trazidos espiritualmente pelo Fundador. Em meados da década de 1970 o Livro Azul (Livro do Hinário) estava composto de 446 hinos.

As Obras de Caridade, iniciadas lá no ano de 1945 pelo Mestre Daniel, tiveram continuidade sob o comando zeloso do presidente Antônio Geraldo, um bom conselheiro. Ele era responsável pelos atendimentos espirituais no Altar da Igreja e pela distribuição do Daime. Com sua melodiosa voz entoava os salmos sagrados durante o Culto Santo.

Na sua gestão foi edificado o Salão de Bailado e instituído esse festejo, com a formação do Conjunto Santa Fé (banda musical).

Fala Antônio Geraldo da Silva:
— Eu via dentro da miração um barquinho navegando no mar. Do mesmo jeito que ele está ali, naquele formato (o Coreto com o Barquinho no topo), todo enfeitado, como depois eu construí. O Barquinho era para a gente ter o bailado.

Outra importante realização foi a criação e o estabelecimento do fardamento, com a simbologia da Missão, bordada à mão. A primeira responsável pelo bordado das fardas foi a irmã Francisca Campos do Nascimento (Dona Chica Gabriel). No seu exíguo tempo livre, o presidente Antônio Geraldo sentava ao seu lado, pegava da linha e agulha e ajudava na lida.

Passados 18 anos, Antônio Geraldo da Silva recebeu uma nova missão, a de fundar o Centro Espirita Daniel Pereira de Matos, em homenagem ao Fundador, e dai prosseguir com os trabalhos espirituais. A abertura do novo Centro ocorreu no dia 20 de janeiro de 1979 — dia do Mártir São Sebastião.

Eu com a fé pura
Que tive em meu coração
Pedi a Jesus
E a Virgem Santíssima
Que me desse outra embarcação.

Origem do nome Barquinha

Para abrir o Culto Santo no templo recém-edificado, o Mestre Conselheiro Antônio Geraldo da Silva contou com o apoio do irmão amigo Sebastião Mota de Melo (Padrinho Sebastião), que lhe forneceu os primeiros litros de Daime, após receber uma carta sua.

Depoimento de José Carlos Bezerra da Silva, presidente do Centro Espírita São Francisco de Assis, em Plácido de Castro – Acre:

— Esta carta foi entregue em minhas mãos e de seu filho Solerne Geraldo da Silva, e então fomos à Colônia Cinco Mil entregar a carta, e ao ler, Sebastião Motta nos entregou uma frasqueira de Daime e disse: “Diga a Antônio Geraldo que se ele precisar de mais pode mandar buscar”.

Eu sentado na margem
Do rio chamado Ilusão
Avistei uma Barquinha
Que vinha correndo
Rumo a minha direção.

Com auxilio de familiares e amigos, Antônio Geraldo, constrói uma igrejinha de madeira e um Salão de Bailado coberto de lona. Logo na primeira festa realizada, uma grande chuva derruba aquele salão improvisado. O dirigente não esmorece:

— Vamos fazer um Barquinho de verdade!

O Salão de Bailado (Parque) foi construído em formato de um Barco, e a partir daí surgiu o nome Barquinha, “pois como a capela ainda não possuía um nome, um título, então todos passaram a chamar de Barquinha” — afirma José Carlos Bezerra da Silva.

Eu me aproximei da Barquinha
Com alegria em meu coração
Nela vinha um bondoso velhinho
Ele entregou-me a Barquinha
E me deu muita explicação

O jornalista e escritor Silvio Martinello residia próximo ao Centro Espírita Daniel Pereira de Matos, lá na Vila Ivonete Nas suas crônicas narrando o cotidiano de seu bairro e da sua cidade, ele sempre se referia a “Barquinha”, especialmente nas noites de festas, quando a música comemorativa irradiada daquela casa Espírita varava as noites rio-branquenses. Isso popularizou o nome “Barquinha”, que os antropólogos passaram a associar a esta linha espiritual ayahuasqueira fundada por Mestre Daniel Pereira de Mattos em 1945, ano de início da Missão.

Este bondoso velhinho
Que trouxe esta embarcação
Foi o Nosso Presidente
Que trabalhou doze anos
Entre todos os meus irmãos.

Depoimento de Antônio Geraldo Da Silva Filho, herdeiro espiritual do Mestre Conselheiro:

— “Assim, passados 18 anos, ele recebeu uma nova missão, a de fundar outro Centro, o qual atribuiu o nome de Centro Espirita Daniel Pereira de Matos, em homenagem ao Fundador da Barquinha e dai prosseguiu com essa nova missão. A abertura do Centro Espírita Daniel Pereira de Matos foi no dia 20 de janeiro de 1979 e daí comandou esse Centro até julho de 2000, quando faleceu, deixando um legado de mais de 300 hinos que são cantados na Igreja e mais de 700 hinos para as festas com bailado, quando as entidades que passaram os hinos vêm para bailar. Esses hinos foram todos recebidos entre os anos 1979 e 2000. O Mestre Antônio Geraldo cumpriu sua missão até o fim, prova disso são os mais de 1000 hinos que recebeu. Um legado de mensagens de profundo conhecimento que só quem aprende a meditar, contemplar, buscar fundo mesmo, consegue compreender a grandeza que são esses ensinamentos”.

Este Marinheiro de Luz, Mestre Conselheiro Antônio Geraldo da Silva, faleceu aqui em matéria e renasceu no mundo espiritual em 28 de julho de 2000.

Lá da eternidade, inspira e orienta a irmandade da sua Barquinha a prosseguir na linda viagem sobre as ondas do Mar Sagrado, recolhendo almas penitentes para entrega-las nos Santos Pés de Jesus.

domingo, 6 de julho de 2014

6 de Julho. Passagem para a vida espiritual do Mestre Raimundo Irineu Serra Juramidã

Jornal Grande Bahia | Juarez Duarte Bomfim | Publicado em 06/07/2014

Todo aquele que de ti se recorde e te chame de coração, e confie, receberá a Luz.

Alquebrado pelo peso da idade e sentindo que se aproximava o dia de sua passagem para o mundo espiritual, Mestre Raimundo Irineu Serra dizia a todos que o procuravam:

- Eu não sinto dor. Eu não sinto fome. Eu não sinto nada. O que eu sinto é não ter para quem entregar o meu trabalho. E saudades de vocês. Eu sinto uma saudade tão grande de vocês que é isto que está me abatendo.

Já não comia carne, dizia que o organismo dele não mais aceitava essas coisas. No final de junho de 1971 ele chamou a um de seus seguidores mais próximos, Leôncio Gomes da Silva e lhe entregou a direção dos trabalhos, dizendo:

- Leôncio, tu vai assumir a direção dos trabalhos. Tu não vai ser o chefe. O chefe sou eu. Mas fique aí para receber as pessoas, para ensinar a doutrina. Escuta o que estou te dizendo, não faça mais do que estou te entregando.

Perto do dia 30 de junho de 1971, Percília Matos da Silva, discípula dileta, pergunta para ele:

- O senhor não gostaria de uma Concentração para melhorar sua saúde?

- É bom! Então vamos fazer. Chame o pessoal mais próximo.

E assim, a Concentração da noite de 30 de junho de 1971 – poucos dias antes do seu passamento – foi feita em benefício da sua cura. No final da função religiosa, Mestre Irineu perguntou:

- Quem foi que viu o meu enterro?

Os presentes disseram que não tinham visto nada, e ele disse que havia recebido um remédio e que ficaria bem.

- E que remédio é este, mestre?

- É um remédio que tem em todo lugar… Eu cheguei a um salão onde havia uma mesa arrumada, toda composta com as cadeiras em seu lugar, só havia uma cadeira vazia, a da cabeceira. Foi então quando a Virgem Mãe Soberana chegou ao meu lado e disse: “De hoje em diante você é o Chefe Geral dessa missão. O General. Tu és o chefe no Céu, na Terra e no Mar. Para todos os efeitos. Todo aquele que de ti se recorde e te chame de coração, e confie, receberá a Luz”.

Foi assim que, depois de 50 anos de trabalho, a Virgem da Conceição, Rainha da Floresta, afirmou e reafirmou o seu comando espiritual.

6 de julho de 1971. Depõe Percília:

“Todo dia quando eu saia daqui, ia lá. E, se não fosse, ele reclamava. Nesse dia eu fui. Ele estava alegre, alegre. Parecia não estar sentindo coisa nenhuma. Conversava e contava história. Fiquei um tempo por lá e disse que ia voltar pra casa pra fazer o almoço. Ele disse:

— Você não vai não. Você ‘tá com fome? – e chamou a menina para botar o almoço na mesa.

– Você não vai agora não. Quero conversar com você.

“Ele estava na maior alegria, contando tudo! Eu pensei: ‘Graças a Deus! Ele está bom!’ E disse para ele:

— Amanhã eu vou à rua, pois vou receber.

— Vá. Pode ir.

“Aí eu tomei benção e ele fez uma recomendação como nunca tinha feito antes. Não entendi nada. Eu o vi tão alegre que não suspeitei de coisa alguma. Ele me recomendou que eu fosse muito feliz. Saí tranquila… e satisfeita”.

A um grande mestre é dado o poder de saber a hora da sua passagem desta vida para o mundo espiritual. Jesus Cristo tinha todo o conhecimento da sua trajetória aqui na Terra, e isso, mais que facilitar a sua missão, aumentava o desafio rumo à vitória.

Prevendo o sofrimento que o esperava com a vil crucificação, suou “grossas gotas de sangue” no Horto das Oliveiras.

— Pai, se quiseres, afasta de Mim este cálice, não se faça, contudo, a minha vontade, mas a tua.

Então vindo do Céu, apareceu-Lhe um anjo que O confortava.

“Quando chegamos (Percília e Pedro, seu marido) em frente ao Palácio (Palácio Rio Branco, no centro da capital do Acre) encontramos a esposa do Seu Doca. Ela vinha amarela, com os cabelos assanhados. Foi logo dizendo:

— O Mestre, meu Deus! O Mestre morreu!

“Só acreditei quando cheguei. Ele ainda estava na cama. O suor derramando como se estivesse trabalhando muito”.

Foi nesta tarde de verão amazônico de 6 de Julho de 1971 que Raimundo Irineu Serra fez a sua passagem para o mundo espiritual, enquanto esperava um chá de folha de laranjeira que a filha Marta preparava. Nesse mesmo dia o seu corpo baixou à sepultura.

Pisei na terra fria
Nela eu senti calor.
Ela é quem me dá o pão
A minha Mãe que nos criou.

Havia ali um vaso cheio de vinagre. Imediatamente correu um deles (soldado) a tomar uma esponja, embebeu-a em vinagre e, fixando-a numa cana e levando-a à sua boca dava-lhe de beber”… “Então Jesus, depois de ter tomado o vinagre, disse:

- Está consumado!

Depois, tornando a dar um grande grito, Jesus entregou o Espírito, dizendo:

- Pai, em tuas mãos entrego o meu Espírito.

Dizendo isso, inclinou a cabeça, entregou o Espírito e expirou.

A minha Mãe que nos criou
E me dá todos os ensinos
A matéria eu entrego a ela
E meu espírito ao Divino

Nosso mestre, Raimundo Irineu Serra, adotou o lema do Círculo Esotérico da Comunhão do Pensamento — Hei de Vencer — que hoje adorna as portas de entrada de muitas casas e centros daimistas. O que temos de vencer é o pecado e a morte, para alcançarmos as promessas do Nosso Senhor Jesus Cristo: “Ao que vencer, farei dele uma coluna do templo do meu Deus; e nunca mais de lá sairá”, isto é, estará livre da “roda de sansara”, do ciclo de nascimento e morte, encarnação e desencarne… livre das agruras de ter que — “se Deus lhe der licença” — voltar a este plano de expiação e resgate que é o Planeta Terra.

Do sangue das minhas veias
Eu fiz minha assinatura
O meu espírito eu entrego a Deus
E o meu corpo à sepultura

Dona Percília esclarece: “e a história do remédio que ele tinha recebido é a terra onde se pisa. Ele não foi pra debaixo da terra? Ele não disse que tem em todo lugar? È a própria terra…”

Jesus Cristo, o Bom Pastor, veio para os seus: “Eu não deixo perecer nenhum daqueles que são meus”; Raimundo Irineu Serra, Mestre Ensinador, poderia afirmar, assim como o Cristo afirmou: “Todo aquele que é da verdade ouve a minha voz”, pois “bem-aventurados são os que ouvem a palavra de Deus e a guardam!”

A um irmão descrente que foi visitá-lo, e que lhe falou da dificuldade de acreditar em Deus, Mestre Irineu recomendou:

- Acredite em mim, que estou aqui, frente a você, que eu acredito em Deus por vós.

Aqui eu findei
Faço a minha narração
Para sempre se lembrarem
Do velho Juramidã.

Fonte: Jornal Grande Bahia - Blog do Juarez Bomfim

quinta-feira, 3 de julho de 2014

Centenário de Francisco Gabriel do Nascimento, servo de Jesus

Por Juarez Duarte Bomfim - 02.07.2014

Francisco Gabriel do Nascimento
O padrinho Chico Gabriel é um exemplo de zeloso patriarca, líder comunitário, soldado dos exércitos de Jesus.

Patriarca de uma laboriosa e ordeira família, Francisco Gabriel do Nascimento (seu Chico Gabriel) é um dos poucos remanescentes ainda encarnados contemporâneos do Mestre Daniel Pereira de Mattos, o Frei Daniel, fundador do Centro Espírita e Culto de Oração “Casa de Jesus — Fonte de Luz” (Rio Branco-Acre), linha espiritual carinhosamente apelidada de “Barquinha”.

Seu Chico Gabriel é um dos muitos nordestinos que migraram para a Amazônia nos ciclos da borracha e formaram a civilização acreana. Paraibano de Brejo do Cruz, uma das suas maiores diversões sempre foi contar causos e sagas de sua infância e juventude sertaneja.

A idade provecta do Padrinho Chico Gabriel (03.07.1914) o torna uma testemunha privilegiada do comecinho desta linda Missão de Luz, pois conheceu o Mestre Daniel quando este ainda construía uma pequena capela voltada para o nascente, medindo mais ou menos 3X5, uma construção rústica de taipa e paus roliços, coberta de palha, que consagrou a São Francisco das Chagas.

Foi assim: Chico Gabriel migrou para Rio Branco – Acre ao lado de um amigo e compadre de nome Luiz. Não tendo onde morar, se hospedara na casa deste amigo. Certa noite, ele conta que, já deitado, ouviu uma maviosa música de serenata e logo depois bateram à porta.

— Luiz!

— Quem é?

— É Daniel.

O compadre Luiz abriu a porta e saiu para o terreiro a conversar com o visitante, o qual ele chamava de Mestre. Ao término da reunião, Daniel falou para o amigo:

— Luiz, quinta-feira vá lá em casa. Estou te esperando.

Despediu-se e foi embora. Nesta época, pessoas humildes com problemas de saúde, dor de dente, espinhela caída, dificuldades familiares e alcoolismo recorriam a Daniel em busca de ajuda. O encontravam sentado num banquinho, lenço branco amarrado na cabeça, com quatro nós dados nas pontas, pronto para atender, conversar, aconselhar, ensinar remédio caseiro, banho de ervas… Dele recebiam uma palavra amiga, um conforto e a cura através do Santo Daime.

No dia combinado o amigo Luiz convidou Chico Gabriel:

— Vamos lá na casa do Mestre Daniel!

— Vamos!

Chico Gabriel conta que nesta primeira visita estavam começando a construção da igrejinha, bem pequena e simples. Após a entrevista do amigo Luiz com Daniel, o Luiz lhe perguntou:

— Quer conversar com o Mestre?

— Eu quase não tenho o que falar…

Mas mesmo assim foi lá conversar com o Mestre. Quando aqui em vida de matéria, manifestando os seus dons de vidência, Daniel costumava dizer para as pessoas:

— Eu sei quem você é e o que está sentindo. Sei o que veio à procura.

Então, o “preto-velho que adivinha” da Vila Ivonete relatava para o consulente quem ele era e o que queria.

— Salve Mestre!

— Salve! Você é Francisco Gabriel?

— Sim.

— Você é uma boa pessoa.

— Eu não sei Mestre. Deus é quem sabe.

— Você está metido numa caminhada perigosa.

Chico Gabriel prontamente negou… O que levou Daniel a reagir:

— Então sou um mentiroso?

— Não senhor… Mestre, quem tem culpa nunca confessa.

O Mestre Daniel falou de um conturbado envolvimento afetivo que Chico Gabriel tinha com uma mulher, e lhe disse que esta relação poderia lhe trazer sérios problemas. Falou também de tudo que se passava com ele. Seguindo os conselhos do seu futuro padrinho e mestre, ele deixou o “negócio” com a tal mulher.

Passaram-se dez anos… foi quando Chico Gabriel conheceu a jovem Francisca Campos. Órfã de pai e mãe, muito pobre e desvalida, a dona Chiquinha lhe contou como era a sua vida de dificuldades e sofrimento, chorando. Compadecido daquela jovenzinha, para consolá-la Chico Gabriel a pediu em casamento, brincando. Mas a pretendente levou a sério.

Passado alguns dias, a suposta noiva de Chico Gabriel lhe comunicou que precisava viajar para a Cidade de Humaitá, no Estado do Amazonas, e lhe pediu permissão.

Foi com alivio que ele autorizou a viagem da nubente, pensando consigo: “que bom… Dessa estou livre”…

Porém, quando dona Chiquinha retornou da viagem e o procurou, Chico Gabriel não pode rejeitá-la. “Não queria fazer uma desfeita”, diz.

Neste momento ele recebeu da Santíssima Rainha uma Rosa Menina, uma Rosa Encantada, cujo amor cultiva em seu peito há mais de seis décadas de vida marital.

Após o parto do seu terceiro filho, Chica Gabriel adoeceu gravemente. Desenganada pelos médicos, seu marido Chico Gabriel a levou para conhecer e se consultar com Daniel Pereira de Mattos — o Frei Daniel. Deste memorável encontro firmou-se um compromisso deste mundo à eternidade, quando seu Chico e dona Chica se tornaram trabalhadores daquela casa espírita, prestando obras de caridade.

Na manhã de domingo de 20 de maio de 1957 dá-se inicio a sua cura e o pacto por ela assumido de que “se ficasse boa continuaria naquela casa, naquela igreja, até o dia que Deus permitisse”.

Já curada, a Madrinha Chica Gabriel vem cumprindo o compromisso assumido de prosseguir a Missão do Mestre Daniel Pereira de Mattos.

Esposo e esposa prestaram obras de caridade naquela Casa de Luz durante quatro décadas, ao lado do Fundador, Frei Daniel, dos presidentes Antônio Geraldo da Silva, Manuel Hipólito de Araújo e de toda a irmandade.

Até que em 23 de novembro de 1991, com a ajuda de uns poucos irmãos, a Madrinha Chica e o seu cônjuge fundaram o Centro Espírita Obras de Caridade Príncipe Espadarte, dando continuidade a Missão de Daniel.

Foi o Padrinho Chico Gabriel — ao lado do filho mais velho Antônio — quem edificou a humilde casinha onde os trabalhos deste Centro Espírita se iniciaram. Casa de Jesus e da Virgem da Conceição consagrada ao Senhor São Francisco das Chagas.

O Padrinho Chico Gabriel é também um bom rezador, na tradição religiosa amazonense. Seguindo os passos do seu Mestre, quando a saúde e a idade permitiam rezava em adultos e principalmente em crianças, prestando obras de caridade.

Devoto do Senhor São Francisco das Chagas, quando a doença dos olhos se agravou aumentou a sua fé em Santa Luzia, cujo salmo muito aprecia.


Na Barra do Jordão, Deus Jesus encontrou
Um cego de guia

Que vinha guiado por sua filhinha
Jesus perguntou: para onde seguiam
— Senhor vou levando meu pai a Belém
Para ser curado por Jesus Messias.

A cirurgia de catarata que este simpático casal de velhinhos realizou em 2012 — cuidando dos seus olhos — lhes restituiu a boa visão e, como por mágica, os rejuvenesceram.

O padrinho Chico Gabriel é um exemplo de zeloso patriarca, líder comunitário, soldado dos exércitos de Jesus. Benzedor, sempre tem uma benção, um conforto, uma palavra amiga para aqueles que lhe procuram.

Companheiro inseparável da Irmã de Caridade, Madrinha Francisca Campos do Nascimento, como se fosse sua alma gêmea, o Padrinho Chico Gabriel plantou e semeou 10 filhos, inúmeros netos, bisnetos e tataranetos.

Servo de Jesus, Francisco Gabriel do Nascimento dá continuidade ao compromisso familiar assumido de prosseguir a Missão de Frei Daniel e dos Santos Missionários do Barquinho Santa Cruz, singrando os mares sagrados, recolhendo as almas penitentes e as entregando aos Santos Pés de Jesus.