24 de novembro, dia acreano da cultura ayahuasqueira

24 de novembro, dia acreano da cultura ayahuasqueira

terça-feira, 24 de novembro de 2020

 

O registro dos dias: o dia da cultura Ayahuasqueira

Inês Virginia P Soares*

Desde 2018, a celebração do Dia da Cultura Ayahuasqueira, em 24 de novembro, integra o calendário do Estado do Acre. A previsão legal desta data, pela Lei estadual n° 3.399/18,  é um bom exemplo da amplitude do leque protetivo dos bens e direitos culturais.

Eleger dias comemorativos para formar e consolidar a memória coletiva é uma prática secular, muito usada em todo o mundo. No entanto, há sempre tensão nos processos de acomodação dos elementos da memória, com disputas pelo protagonismo das narrativas oficiais. E, durante muito tempo, não prevalecia a diversidade, e as homenagens eram, geralmente, rendidas a grupos ou pessoas que já desfrutavam de privilégios e poder.

Nesse contexto, o resgate da data da assinatura da “Carta de Princípios para o uso da ayahuasca perante a sociedade e o Governo Federal” (firmada em 24 de novembro de 1991), como o dia estadual para valorizar o exercício de uma manifestação cultural, fortalecer a diversidade cultural acreana e realçar a existência de um patrimônio cultural ligado ao uso da Ayahuasca em rituais religiosos, sinaliza novos ares e se consolida como uma iniciativa relevante e inspiradora.

A efeméride fortalece os que exercem seus direitos culturais e pode ser entendida como um lugar de memória, de acordo com a ideia original do termo, difundida pelo historiador Pierre Nora, na publicação de 1984, da coleção de textos intitulada Les lieux de mémoire, pela editora Gallimard, de Paris. Para Nora, os Lugares para a Memória “nascem e vivem do sentimento de que não há memória espontânea, que é preciso criar arquivos, manter aniversários, organizar celebrações, pronunciar elogios fúnebres, notariar atas..." (NORA, 1993). O citado historiador esclarece que esses lugares assumem os sentidos material, simbólico e funcional; e graus diversos. Inclusive, um lugar de aparência puramente material, como um depósito de arquivos, só é lugar de memória se a imaginação lhe confere uma aura simbólica. Um lugar puramente funcional, como um livro didático, um testamento ou uma associação de ex-combatentes só entra na categoria se for objeto de um ritual. Um minuto de silêncio, que parece o exemplo extremo de uma significação simbólica, é por sua vez o recorte material de uma unidade temporal e serve, periodicamente, para uma convocatória concentrada da lembrança (NORA, 1993).

​O termo foi inicialmente utilizado no campo dos direitos humanos para se referir a diferentes suportes para celebração das memórias de vítimas submetidas a graves violações e/ou supressões de direitos: desde um minuto de silêncio até locais que foram palco de violações de direitos e outras práticas nefastas. Pierre Nora também ressalta que certos lugares de memória são bastiões: “se o que eles defendem não estivesse ameaçado, não se teria, tampouco, a necessidade de construí-los” (NORA, 1993).

A instituição do Dia da Cultura Ayahuasqueira é, nessa visão, uma “pequena fortaleza”, um abrigo, para as comunidades que utilizam a bebida como um dos elementos essenciais de seu ritual religioso.

 Apesar da riqueza da concepção original do termo Lugar de Memória, a doutrina consolidou um entendimento mais restrito e hoje a expressão é usada para um espaço material e construído. A bibliografia anglo-saxã começou a falar de “sites of memory”; a hispânica de "sitio o espacios para la memoria”; e no Brasil a expressão usual é “Lugares de Memória” ou “Sítios de consciência”.

Assim, embora a data que celebra a cultura Ayahuasqueira seja essencialmente um lugar de memória, os estudiosos não a chamariam assim hoje em dia. Mas, podemos considerá-la como um relevante componente do conjunto de abordagens, mecanismos e ações para proteção, promoção e (re)conhecimento dessa prática cultural pela coletividade, com a finalidade de valorização da diversidade e fortalecimento dos direitos das pessoas que participam dos rituais que usam Ayahuasca, bem como de sua transmissão para as futuras gerações. E mais: essa data é um instrumento protetivo que tem respaldo nos artigos 215 e 216 da Constituição.

Nosso texto constitucional, além de indicar o dever do Estado de garantir a todos o pleno exercício dos direitos culturais, bem como o dever de apoiar e incentivar a valorização e a difusão das manifestações culturais (art. 215), ainda abarcou a imaterialidade na consideração dos bens que integram o patrimônio cultural brasileiro, não somente indicando que tanto as formas de expressão como os modos de fazer, criar e viver são bens culturais, como também ampliando os instrumentos protetivos dos bens culturais (art. 216, §1º), com uma ruptura clara da exclusividade ou preponderância do tombamento. O Registro surge nesse dispositivo da Constituição como um instrumento de destaque, já que veio para preencher a lacuna de proteção para os bens (imateriais), que não eram alcançados pelo tombamento. Mas, o aludido parágrafo §1º do art. 216 também deu abertura aos Estados e à comunidade para pensarem e implementarem “outras formas de acautelamento e preservação''.

Nessa perspectiva, a inserção de um dia no calendário estadual é uma forma de acautelamento que caracteriza como bastião da memória e tem sede constitucional. No entanto, é necessário usar também, e em conjunto, outros instrumentos protetivos do patrimônio cultural, a começar pelo Registro dos Usos Rituais da Ayahuasca.

A reflexão sobre os limites e avanços na proteção dos bens culturais imateriais no cenário brasileiro encontra no processo de Registro dos Usos Rituais da Ayahuasca, instaurado no IOHAN, em 2008, alguns pontos instigantes. A demora e os obstáculos encontrados na condução deste procedimento de registro desafiam a reflexão acerca de algumas posições defendidas sobre a importância deste instrumento protetivo.

O Decreto nº 3.551 de 2000 criou o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial e instituiu o registro de bens culturais que constituem o patrimônio cultural brasileiro. O procedimento de registro fica a cargo do IPHAN, a autarquia federal que cuida do patrimônio cultural brasileiro.

O registro pode se dar em um dos quatro Livros: Livro de Registro dos Saberes, Livro de Registro das Celebrações, Livro de Registro das Formas de Expressão e Livro de Registro de Lugares. Quando existir a necessidade de inscrição de um bem que não se enquadre em qualquer um dos livros já nominados pelo Decreto, outros livros poderão ser abertos com a finalidade de atender a demanda específica. Mesmo com a abertura normativa, nestes vinte anos, não se criou livro algum além dos quatro livros expressamente nominados no decreto.

Os procedimentos a serem observados na instauração e instrução do processo administrativo de Registro estão indicados na Resolução 001/2006, que regulamenta o Decreto 3.351/2000. Em seus considerandos, a citada Resolução define bem cultural de natureza imaterial como as criações culturais de caráter dinâmico e processual, fundadas na tradição e manifestadas por indivíduos ou grupos de indivíduos como expressão de sua identidade cultural e social; destaca, também, que o termo tradição é usado, na Resolução, em seu sentido etimológico de “dizer através do tempo”, significando práticas produtivas, rituais e simbólicas que são constantemente reiteradas, transformadas e atualizadas, mantendo, para o grupo, um vínculo do presente com o seu passado. 

A abertura do procedimento de registro se fará com base em parecer circunstanciado da Câmara do Patrimônio Imaterial e será precedida por Resolução específica do Conselho Consultivo, contendo a justificativa e a especificação das categorias correspondentes.

A elaboração e conclusão do Inventário Nacional de Referências Culturais (doravante INRC) é a primeira etapa para se registrar um bem como patrimônio cultural brasileiro. A segunda etapa é o Registro do bem, com sua inscrição em um dos quatro Livros de Registros. Inscrito, o bem recebe o título de “Patrimônio Cultural do Brasil”.

O INRC é definido, no site do IPHAN, como “principal instrumento de pesquisa de identificação a metodologia de pesquisas desenvolvidas para produzir conhecimentos sobre os domínios da vida social, aos quais são atribuídos sentidos e valores e, portanto, constituem marcos e referências de identidades para determinar a virtude social. A identificação de referências é estruturada em cinco categorias: celebrações, formas de expressão, ofícios e modos de fazer, edificações e lugares. O inventário, baseado no INRC, é dividido em três etapas: levantamento preliminar, identificação e documentação.”

Em 2017, o IPHAN organizou e realizou uma Apresentação Pública do Levantamento Preliminar do INRC dos Usos Rituais da Ayahuasca, em Rio Branco. Certamente uma atividade pertinente com os princípios de participação e transparência que regem o procedimento de Registro. Ao mesmo tempo, este evento público foi a última movimentação noticiada pelo IPHAN no procedimento. A estagnação na fase de levantamento preliminar do INRC e sua inconclusão até a presente data destoam da iniciativa de diálogo e de valorização dos princípios da boa gestão administrativa. Afinal, a demora no processo decisório transmite à comunidade uma mensagem de pouca relevância do bem a ser registrado, ao contrário da celeridade, que sinaliza que a avaliação do bem é prioridade e que o exercício dos direitos e da diversidade cultural merece atenção, valorização e ações do poder público.

No mais, não custa lembrar a necessidade de finalização do INRC, já que este inventário, além de pressuposto para a fase decisória do Registro, é também um instrumento que pode ter valor protetivo autônomo, porque seu teor, como esclarecido na definição transcrita acima do site do IPHAN, consiste na produção de “conhecimentos sobre os domínios da vida social, aos quais são atribuídos sentidos e valores e, portanto, constituem marcos e referências de identidades para determinar a virtude social.”

A Resolução IPHAN 001/2006, que regulamenta o Decreto 3.351/2000, estabelece a participação da sociedade também na fase decisória do Registro. No art. 12 da aludida Resolução é prevista a manifestação da sociedade após a conclusão da instrução técnica do processo administrativo de Registro e do seu exame pela Procuradoria Federal. O prazo para que a manifestação dos interessados será de 30 dias a partir da publicação, na imprensa oficial, de aviso contendo o extrato do parecer técnico do IPHAN e demais informações pertinentes. No art. 13, parágrafo único, da mesma norma, tem-se a previsão de realização de audiência pública, caso tenham ocorrido manifestações em contrário por parte da sociedade. A decisão acerca a realização ou não de audiência pública fica ao cargo do Conselho Consultivo.

Vale destacar que todo movimento e aparato administrativo colocado à disposição da comunidade ou do indivíduo deve ser no sentido de que seu direito fundamental à liberdade cultural seja realizado plenamente, não cabendo indicação restritiva na forma de gestão ou manejo do bem, ou ainda controle do teor das manifestações ou expressões populares ou tradicionais. As medidas voltadas para a promoção e fomento dessas manifestações culturais, pelos órgãos públicos, devem ser sempre iniciativas complementares indispensáveis à proteção propiciada pelo Registro.

No mais, o registro não cria ou modifica o status ou a essência do bem imaterial. O valor dos Usos Rituais da Ayahuasca é conhecido e vivido por grupos que exercemsua liberdade de manifestação cultural e religiosa. Nessa ótica, a patrimonialização não mudará a relação dos participantes com o bem imaterial.

No entanto, quando (ou se) o IPHAN reconhecer que a prática cultural de utilização da bebida em ritual religiosos se enquadra nos requisitos para a concessãoo título de Patrimônio Cultural Brasileiro, ocorrerá um fortalecimento dos grupos e da prática nos espaços públicos e perante a sociedade em geral. Haverá exigência de posicionamento do poder público no sentido de evitar, também sob a ótica da patrimonialização, que direitos dos praticantes sejam violados. O compromisso de respeitar a prática cultural será público e se irradiará pela comunidade.

Nessa perspectiva, a titulação é um instrumento que se projeta para o futuro já que com o Registro vem o Plano de Salvaguarda e a possibilidade de uma maior proteção dos Usos Rituais da Ayahuasca.

Ao pensar na relação intergeracional e no legado da cultura Ayahuasqueira, surgem alguns dos pontos comuns a outros tantos patrimônios imateriais: o fortalecimento da identidade cultural, o respeito a diversidade cultural, o vínculo da comunidade com seu território e a compreeenção dos elos ou de memória que ligam os indivíduos de uma comunidade a seus bens culturais.

O arranjo institucional protetivo dos direitos e bens culturais é norteado pela ideia de que a proteção dos bens imateriais apenas tem sentido em um contexto vivo, de compartilhamento de experiências e de conhecimento. Por essa razão, para muitos patrimônios, inclusive para os Usos Rituais da Ayahuasca, o Registro pelo IPHAN é uma bandeira de luta, reconhecimento e resistência.        O uso da Ayahuasca tem inúmeras interfaces e tensões, com complexidades bem maiores e mais largas do que as advindas da seara do patrimônio cultural. Há muitos outros interesses legítimos e com consequências econômicas e de saúde pública, que não podem ser desconsideradas.  Mas, a meu ver, esse debate não é essencial ou nem é pressuposto para adoção de medidas protetivas e de patrimonialização do bem imaterial das comunidades não indígenas que praticam a cultura ayahuasqueira.

            Não posso encerrar este texto sem mencionar a lição instrinseca entre os usos rituais da ayahuasca e o conhecimento tradicional dos povos da região amazônica. Mas essa lição não me impede de considerá-los como bens autônomos, como características próprias. Sei que, nesse contexto, há a complicadíssima discussão sobre os limites do protagonismo dos povos indígenas. grupo detentor desse saber ancestral. Mas, na minha opinião, são diferentes as perspectivas entre os povos indígenas e os grupos que usam a Ayahuasca em seus rituais religiosos, apesar da bebida em comum. Também noto que o suporte normativo, a começar pelo suporte constitucional, é diverso. Exatamente dentro dessa lógica é que percebo que há espaço para diálogo e construção de soluções.

       Uma das janelas de reflexão que mais me interessa e me encanta na temática cultural é exatamente a imprescindibilidade da existência de dias especiais para o exercício dos diretos culturais. A riqueza do cotidiano é, quase sempre, suficiente para a liberdade de expressão cultural. Mas, vez por outra, o excepcional acontece e uma luta de anos vira um “Dia”. É inspirador pensar que a inscrição do Dia da Comunidade Ayahuasqueira se transformou em instrumento protetivo; e que este meio de proteção dura meses, anos, enquanto espera o Registro e tudo mais que o tempo trouxer.

       *Inês Virgínia Prado Soares - formada em direito, é desembargadora do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, mestre e doutora em direito pela Pontifícia Universidade Católica da São Paulo – PUC-SP, com estágio de pós-doutorado no Núcleo de Estudos de Violência da Universidade de São Paulo – NEV-USP (2009-2010).

           

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